Literatura e Trabalho

Literatura e Trabalho - Outubro/2020

Neste mês de outubro, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando o tema do trabalho na literatura clássica, de tradição grega, a partir de três mitos relativamente conhecidos: o da Pedra de Sísifo; o do Tonel das Danaides; e o dos Trabalhos de Hércules.

No mês anterior, ao me debruçar sobre a construção burguesa de uma ética do trabalho, em contraposição a uma ética aristocrática, na obra de Eça de Queirós, fui indagado sobre outras éticas possíveis. Assim, acudiu-me tratar do tema desde o berço de nossa tradição literária. Não vou me deter, aqui, em nenhum autor específico (embora Ovídio, Eurípides e Homero sejam referências bastante naturais neste caso), pois as figuras mitológicas em geral, como se sabe, permeiam toda a literatura grega e latina de forma ora esparsa, ora específica – sendo difícil, portanto, encontrar em uma só obra toda a história do mito (o caso de Hércules é exemplar nesse sentido).

Talvez o mais conhecido de todos esses três mitos gregos que abordaremos aqui seja o da Pedra de Sísifo. Conforme Edith Hamilton, em sua obra Mitologia:

Sísifo era rei de Corinto. Um dia viu, por acaso, uma enorme águia, maior e mais esplêndida do que qualquer ave mortal, que levava nas garras uma jovem e dirigia-se com ela para uma ilha não muito distante. Quando o deus-rio Asopo veio dizer-lhe que sua filha Egina tinha sido raptada, provavelmente por Zeus, e pediu-lhe que o ajudasse a encontrá-la, Sísifo contou-lhe o que tinha visto. Por esse motivo, o rei atraiu sobre si a fúria implacável de Zeus: no Hades, foi condenado a ficar para sempre, rolando montanha acima uma rocha que sempre caía antes de chegar ao cume. (Edith Hamilton, in Mitologia, 1999, p.460)

Resta claro, pelo excerto, que o duro trabalho de Sísifo é, na verdade, um castigo. Ademais, não bastasse a árdua e eterna tarefa, o seu fazer é estéril e sem uma finalidade, digamos, edificante ou pedagógica. Se em nossa cultura a punição costuma ser abordada como uma forma de educar o transgressor, para que não repita mais seu erro, para os gregos o sentido da pena não parece ser o mesmo. Sísifo cometeu uma falta (delatou Zeus) e, por isso, foi condenado a tais trabalhos eternos no mundo subterrâneo, ou seja, o sentido da repreensão é conforme a paixão da vingança. Pior, a maior vingança de todas é, justamente, condenar alguém ao trabalho.

Nesse mesmo sentido temos o mito do Tonel das Danaides. As Danaides eram as 50 filhas de Dânao que, ao se verem forçadas a se casarem com seus primos, recusam a investida com o apoio do pai. O problema é que a elas não assistia esse direito. Assim, em acordo secreto com o pai, os casamentos são aceitos de modo que elas matem seus respectivos maridos na noite de núpcias. Apenas uma delas, Hipermnestra, não terá coragem de cumprir com o combinado, ajudando o primo a fugir. As outras 49 irmãs são condenadas, no Hades, a carregar água em jarros repletos de furos que deixam o líquido vazar. Assim é que o mito do Tonel das Danaides, que nunca quedava cheio, tornou-se sinônimo de trabalho sem fim. Embora aqui a condenação a tais trabalhos não seja motivada pela vingança, chama a atenção o fato de que as características do trabalho, ou seja, estéril e eterno, permaneçam as mesmas.

Ocorre que, conforme o éthos grego, o sentido da vida de seu herói residia, justamente, em entrar para a história da humanidade a partir de sua obra e de seus feitos – ou, em outras palavras, o sentido da vida do homem grego era se tornar um mito. O trabalho, portanto, só faria sentido se seu objetivo fosse o de tornar mito o herói. Dessa forma, condenar alguém a um trabalho infrutífero e interminável equivale a privar o herói da possibilidade de alcançar seu status de mito. O interessante, nessa formulação, é que para entendermos essa lógica recorremos, precisamente, a um mito... Para que reste claro o raciocínio, tanto as Danaides quanto Sísifo são condenados aos eternos e estéreis trabalhos para que não sejam alçados à categoria de mitos. Em ambos os casos, contudo, a centralidade da obra humana, de seu trabalho, é tal que o resultado acaba por ser o contrário do pretendido – ambos se tornam, afinal e precisamente, mitos. É preciso notar, todavia, que ambos se tornam mitos não pelos próprios trabalhos, mas por obra do castigo de Hades ou de Zeus.

Por fim, temos o mito dos Trabalhos de Hércules – que eram 12, afinal. Hércules já se constituía como semideus, herói e mito quando de seus 12 Trabalhos. Aqui, portanto, o sentido do trabalho será outro. Sem que seja necessário entrar em detalhes sobre toda a trajetória de Hércules (ou Héracles), filho de Zeus e Alcmena, suas 12 tarefas são impostas por Euristes, como forma de penitência, para que Hércules se purifique do terrível crime de ter matado a mulher e seus três filhos, após ser acometido pela Loucura. Para Hércules os 12 Trabalhos impostos eram apenas uma forma de curar sua expiação; para Euristes, entretanto, eram uma oportunidade de se aproveitar do herói, infligindo a ele 12 tarefas impossíveis de serem cumpridas e que, ao mesmo tempo, poderiam conferir algum tipo de vantagem a Euristes.

Nesse caso, portanto, trata-se de um trabalho repleto de sentido. Ao conseguir cumprir cada um de seus 12 Trabalhos (que o próprio Hércules não sabia serem impossíveis), o seu feito só faz enaltecer o herói como mito. Assim, quando nos remetemos ao mito dos Trabalhos de Hércules hoje em dia, é justamente para convencer alguém de que nenhum trabalho é impossível de ser realizado – caso ninguém conte a você que é incapaz de realizá-lo. Interessante notar, ademais, que não é Euristes, que explora as habilidades de Hércules num momento de fraqueza do herói, quem se torna mito – senão o próprio Hércules. O éthos grego, portanto, embora permita que o trabalho possa ser uma forma de vingança horrível, não enaltece aquele que explora o trabalho alheio. Na verdade, o castigo, como vimos, está menos no trabalho em si, e mais em sua natureza estéril. Todo trabalho, para os gregos, desde que imbuído de sentido, era a chave para a glória eterna.