Neste mês de março, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando o desemprego, a partir de Quarto de Despejo (1960), os diários que Carolina Maria de Jesus redigiu entre os anos que vão de 1955 até o dia 1º de janeiro de 1960.
Se a proposta é discutir literatura e o modo como o trabalho é por ela representado, não é possível se furtar ao seu avesso – ou seja, a ausência de trabalho. O termo mais apropriado, nesse caso, é desemprego, pois o trabalho, de uma forma ou de outra, sempre existe, ainda que não remunerado. Ocorre que, no modo de produção em que vivemos, nossa mão de obra é uma mercadoria, medida em horas, e vendida em troca de um salário, do qual dependemos, essencialmente, para viver.
Sendo assim, quando se fala em desemprego, o que está em jogo é a sobrevivência de uma família – isso se a família não vier a ser totalmente desagregada por conta, justamente, de uma situação de desemprego. Afinal, quem nunca ouviu a história de alguém que foi buscar emprego longe de casa, em outro estado, em outro país, e que acabou não voltando? Há um romance em particular em que o enfrentamento dessa situação é emblemático. Em The Grapes of Wrath (1939), de John Steinbeck, por exemplo, para evitar que a família se esfacele, depois que a Crise de 1929 chega aos campos de Oklahoma, todos os seus membros decidem migrar para a Califórnia, em busca de trabalho, juntos. Durante a viagem, num velho caminhão Ford, ao cruzar o deserto, a matriarca da família silencia sobre a morte do avô, a quem ela embala em seus braços na caçamba. Quando os filhos descobrem o ocorrido, já depois de terem cruzado o deserto, a mãe justifica sua atitude desesperada dizendo que a família deveria permanecer unida para cruzar o deserto. Se houvessem parado para enterrar o avô antes de percorrerem a parte mais difícil da viagem, certamente teriam desistido da empreita. Por conta desse profundo senso de coletividade, o livro chegou a ser banido de várias bibliotecas públicas estadunidenses, sob a acusação de promover o comunismo – ainda assim, só no ano de seu lançamento, vendeu mais de 500 mil cópias nos Estados Unidos e Steinbeck foi, ainda, agraciado com o prêmio Pulitzer naquele mesmo ano.
O livro de Carolina Maria de Jesus também foi, a seu modo, um fenômeno literário. No ano de seu lançamento, alcançou 100 mil cópias vendidas – o que despertou o despeito de alguns escritores de renome, e que haviam de se contentar com tiragens de 3 ou 5 mil cópias de seus livros. O fato é que Carolina, com sua linguagem direta e urgente, aliada ao formato confessional de um diário, conseguiu traduzir como ninguém a miséria que todos viam, mas sobre a qual todos silenciavam.
Os anos de 1950 no Brasil foram marcados por um grande movimento migratório rumo ao sudeste por conta das promessas de trabalho que se anunciavam como consequência de nosso processo de industrialização. Nesse contexto, houve uma ocupação bastante desigual e injusta do território. Carolina, por exemplo, era moradora de uma favela. É possível, no entanto, afirmar que a personagem principal de seus escritos não é nem a própria Carolina, nem a favela – é a fome. Pois, se não há emprego, é justamente o fantasma da fome o primeiro a bater à porta. Mãe de três crianças, Carolina se orgulha de não depender de marido e de se desdobrar para dar de comer aos filhos. Como não há trabalho, ela vive de catar papel na rua e de vender o que recolhe por uma ninharia que mal chega para a única refeição do dia. Vivendo na favela do Canindé, nas várzeas do rio Tietê, sua luta diária é, primordialmente, contra a miséria.
A sua preocupação se justifica não só por uma questão de sobrevivência física e material (se eu não comer, eu morro), mas também por uma questão moral (teme que os filhos roubem para terem o que comer). E é nesse sentido que sua exaustiva e monótona rotina de catar papel, vendê-lo e depois comprar algo para comer acaba dotada de uma notável envergadura ética, pois o que está em jogo, para Carolina, é, também, a existência e a dignidade de sua família. Não é à toa que ela goza de certo respeito (e de bastante despeito também) na favela onde mora. As mulheres são temerosas de suas atitudes independentes. Os homens, por sua vez, vivem fazendo a ela propostas de união. Mas Carolina só pensa em duas coisas: conseguir dinheiro para comprar comida e escrever seu diário para esquecer sua dor. Quando a fome não a deixa dormir, abre seus cadernos e começa a escrever.
E eis que nos deparamos com a imundície dos ratos e do esgoto; com o racismo e o preconceito contra a pobreza que ela e seus filhos sofrem; com a indiferença dos abastados; com o oportunismo de candidatos desonestos; etc. Mas há também quem olhe para o lado e que tenha empatia pelo outro. Foi o caso do jornalista Audálio Dantas, que, numa visita à favela do Canindé, conheceu Carolina e seus diários e não descansou enquanto não os viu publicados.
Ler Quarto de Despejo nos dias de hoje é, portanto, fundamental para conhecermos a dura realidade daqueles anos difíceis, para além do que a Bossa Nova revelava ao mundo nas belezas da vida pequeno-burguesa carioca. O que, no entanto, nos deixa angustiados durante a leitura é perceber a atualidade desses diários. Num momento em que a informalidade do trabalho ultrapassa os 40%, em que o desemprego bate recordes, em que as garantias trabalhistas e previdenciárias são retiradas do trabalhador com a promessa de dias melhores, em que mesmo os programas de renda mínima sofrem com os cortes, é, mais uma vez, o fantasma da fome que ameaça a existência das famílias. Assim, ler os diários de Carolina, nessa conjuntura, é também uma forma de reafirmar a urgência em exigir uma política econômica que promova não só crescimento (e sabemos que nem isso os poderes estabelecidos estão conseguindo), mas também desconcentração de renda, a fim de reduzir a desigualdade. Caso contrário, estaremos, todos, condenados à miséria – a dos que passam fome e a dos que são indiferentes a ela.