Neste mês de maio, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando as celebrações do dia do trabalho, a partir do conto “Primeiro de Maio”, escrito entre 1934 e 1942, por Mário de Andrade, e publicado postumamente em Contos Novos (1947).
Cresci ouvindo meus tios, aos domingos, contando histórias sobre as greves de metalúrgicos e as assembleias de operários no estádio Primeiro de Maio, aqui em São Bernardo do Campo. Só depois de adulto é que aprendi a associar as imagens de registro histórico daqueles dias às lembranças dos meus tios acerca dos helicópteros do exército sobrevoando bem baixo por sobre a cabeça dos trabalhadores, apontando metralhadoras de grosso calibre contra eles, a fim de os intimidarem. Se tinham medo? Claro que sim... Mas o que os mantinha perseverantes eram tanto o fato de estarem unidos, convictos de suas reivindicações, quanto a clareza de que eram os patrões, sobretudo, que precisavam deles (e não eles dos patrões).
O fato é que essa batalha dos trabalhadores, organizados em sindicatos, contra o arrocho salarial imposto pela política econômica do regime militar se desdobrou em uma luta política que demandava a volta da democracia. Trocando em miúdos, os trabalhadores foram capazes de perceber que não bastava enfrentar os seus patrões – era preciso mudar o sistema. A mudança, todavia, ocorreu conforme as imposições e vicissitudes da história e se limitou às “Diretas Já!” e à Constituição de 1988. Isso tudo pode até parecer pouco, observando aquele cenário a partir da comodidade dos dias de hoje, mas o fato é que, historicamente, esses pequenos passos talvez tenham sido os mais largos que os trabalhadores e as trabalhadoras brasileiras tenham dado desde o advento da abolição.
Isso não quer dizer, contudo, que a classe operária não tenha lutado, muitas vezes até à morte, antes das grandes greves do ABC. Mas foi a confluência de inúmeros fatores o que favoreceu a força daquele movimento – a organização sindical independente, a concentração espacial de trabalhadores qualificados, uma crise sistêmica do capital (despoletada em 1973 e aprofundada em 1979, com o primeiro e o segundo choques do petróleo, respectivamente) e, finalmente, o desgaste dos próprios militares no poder (que se supunham provisórios, mas que atuaram efetivamente entre 1964 e 1985).
Esses fatores, como veremos no conto de Mário de Andrade, nem sempre estiveram presentes em nossa história da mesma forma. Trata-se de um conto breve, que não chega a dez páginas. Nele nos deparamos com a história de um dia na vida do 35, um jovem carregador de 20 anos, que despende sua força com as malas que chegam e partem da Estação da Luz. O que ocorre de mais extraordinário aqui é o fato de o 35, num dia Primeiro de Maio, negar-se ao trabalho – pois é preciso celebrar o seu dia de trabalhador. Assim, o 35 acorda cedo, 6 horas da manhã, e se prepara para aquele grande dia. Toma banho, faz a barba e se veste com uma roupa de luxo preta, com uma gravata verde e um sapato amarelo. Ao sair, decide passar pela Estação para cumprimentar os amigos antes da celebração, mas é ridicularizado por eles. Seguiria seu passo só, mas convicto, muito mais pela leitura dos jornais do que pela sua experiência de vida, de que “o proletariado era uma classe oprimida”.
Depressa o 35 percebe, caminhando a esmo pela cidade, que não saberia muito bem onde poderia celebrar o seu dia, uma vez que todos os estabelecimentos estavam fechados, por conta do feriado, e que havia polícias por todos os lados. Ao ler os jornais do dia, ficara embevecido com as notícias sobre a possibilidade de motins em Paris e no Chile. No entanto, ali estava ele, sozinho – todos os demais carregadores estavam trabalhando na Estação normalmente. Ademais, como se já não fosse impossível começar um motim sozinho, em São Paulo a polícia havia proibido comícios de rua e passeatas. O que resta é um grande piquenique para as famílias descansarem o feriado, um jogo de futebol para distrair os trabalhadores e um evento oficial no Palácio das Indústrias, com direito a discurso do Secretário do Trabalho e a todo um aparato de segurança de Estado, que inclui atiradores posicionados no topo dos prédios e a cavalaria intimidando os passantes.
O 35, depois do almoço, descarta o piquenique e o jogo de futebol e desce ao Parque Dom Pedro a fim de verificar se é possível celebrar algo no Palácio das Indústrias. Embora suspeite de que haja alguns anarquistas por ali, percebe que são muito poucos para provocar um motim diante de um aparato de Estado que se impõe. Assim, mais que depressa o 35 toma o bonde e sobe até a Sé. E por ali gasta a tarde toda, esperando que algo aconteça. Ao fim do dia, vai à Estação da Luz ver os companheiros de labuta, que o recebem com um misto de desconfiança e deboche. Quando chega o trem, todos se dispersam e o 35 termina seu dia ajudando a um velho carregador atribulado com umas quantas malas pesadas.
O contexto do protagonista, no conto, é o de outra ditadura – a do Estado Novo de Vargas, que compreende os anos de 1937 a 1945. Talvez pareça pouco, mas se levarmos em conta que Vargas esteve no poder entre 1930 e 1945, as coisas mudem significativamente de figura, pois resta claro que o advento do Estado Novo (1937) nada mais foi do que um desdobramento da chamada Revolução de 1930. Apesar dessa semelhança, o 35 (uma referência à Intentona Comunista de 1935?) não vai ao Primeiro de Maio junto de seus colegas, organizados como os metalúrgicos do ABC viriam a fazer na década de 1970 – mas sozinho. Por fim, a crise sistêmica de 1929, nesse caso, foi o que possibilitou a ascensão de Getúlio Vargas ao poder – e não uma ameaça, como seriam as crises de 1973 e 1979 para os militares. No contexto do conto, portanto, o que se impõe é a força do Estado, que sufoca a luta dos trabalhadores (talvez satisfeitos com as leis trabalhistas de Vargas) a partir do estabelecimento de um Primeiro de Maio oficial, de celebração controlada e festiva.
E hoje? O que temos? Se é fato, como faz crer o conto de Mário de Andrade, que a organização da classe trabalhadora é fundamental para a reivindicação e a conquista de direitos (fato comprovado, aliás, pelas greves do ABC), o que fazer quando esses direitos não estão mais à disposição? Como organizar, em sindicatos fortes, trabalhadores precarizados que sequer têm o seu vínculo empregatício reconhecido pelos aplicativos da modernidade? Embora ainda estejamos sofrendo as consequências da crise de 2008 (como o 35 a de 1929 e os metalúrgicos as de 1973 e 1979) e estejamos, também, à beira de um regime democrático bastante duvidoso (como eram o regime de Vargas e o dos militares de 1964), as semelhanças param por aí. O fundamental para o início de qualquer mudança efetiva, ou seja, a classe trabalhadora organizada, é o que falta neste momento. Acrescentemos a esse estado de coisas uma quarentena e está posta a imobilidade. O Primeiro de Maio deste ano de 2020, nesse sentido, foi, sob todos os aspectos, singular – para dizer o mínimo. Embora tenha reunido os mais diversos segmentos da sociedade civil organizada, sua mobilização se deu online – o que, ao contrário do que se pensa, tem uma efetividade bastante limitada. O que se espera é que, passada a quarentena, essa junção de forças se amplie ainda mais e ocupe as ruas, pois certamente ainda haverá muito pelo que lutar.