Neste mês de junho, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando o realismo mágico de Murilo Rubião, a partir do conto “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, publicado pela primeira vez em 1947.
Murilo Rubião é daqueles autores que resistem às classificações correntes. Com uma obra não muito extensa, somando pouco mais de 30 contos, o escritor mineiro explora uma vertente literária incomum em nossa língua. A despeito do rótulo que se empregue (realismo mágico, literatura fantástica, insólita, onírica, etc.), Rubião abarca a todos eles, mas de uma maneira tão singular e, diríamos, mineira, que o torna caso único nas letras brasileiras.
Antes de tudo é preciso notar as epígrafes invariavelmente bíblicas que abrem todos os seus contos. No caso de “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, temos um trecho dos Salmos: “Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre” (LXXXV, 1). A princípio, essas epígrafes não costumam fazer sentido algum, mas, se acaso o fizerem para quem é leitor assíduo do Velho Testamento e conhece muito bem o contexto de onde são retiradas as citações, logo restará claro que a leitura do conto costuma dar um novo significado a essa mesma epígrafe. Vejamos.
O conto é narrado em primeira pessoa e, de pronto, a informação que temos é a de que se trata de um funcionário público. Até aí, nada de insólito. Mas logo o narrador nos informa que foi atirado à vida sem pais, infância ou juventude – não há, tampouco, qualquer memória desses dias. Seu primeiro momento de auto reconhecimento se dá, justamente, diante de um espelho na Taberna Minhota, quando percebe os cabelos ligeiramente grisalhos. Isso, no entanto, não o deixa espantado, muito menos quando retira do bolso o dono do restaurante – este sim, perplexo, querendo saber como o narrador fizera aquilo. Sem pestanejar, o proprietário do estabelecimento lhe oferece um emprego, ao que o narrador aceita prontamente, passando a divertir os frequentadores do lugar com seus passes mágicos.
Os problemas logo surgem quando o mágico passa a presentear os espectadores com almoços gratuitos, que ele extraía de dentro do paletó. Assim, o patrão indica o mágico para trabalhar no Circo-Parque Andaluz, que logo o contrata. Suas apresentações empolgam multidões e geram lucros fabulosos aos donos da companhia. Com facilidade o mágico extrai de seu chapéu coelhos, cobras, lagartos. Dentre os dedos, faz surgir um jacaré, que de pronto é transformado em uma sanfona, em que toca o Hino Nacional da Cochinchina.
Embora a plateia vá ao delírio com o espetáculo, o próprio mágico é totalmente indiferente aos aplausos. Dos rostos inocentes só sente pena, pelos sofrimentos que a vida adulta ainda há de lhes impor. De resto, ambiciona apenas o que não teve: um nascimento e um passado. Com o tempo, as mágicas lhe saem a esmo, sentado num café, arrancando dos bolsos pombos, gaivotas e maritacas. Da gola do paletó, aparece um urubu. Das calças, deslizam cobras. Essas magias todas incomodam as pessoas na via pública e o destino é a delegacia. Ali menciona sua condição de mágico e promete não molestar mais ninguém.
Vez em quando acordava assustado, com um pássaro ruidoso a sair-lhe pelos ouvidos. Certa feita, irritado com esse estado de coisas, decide que nunca mais há de fazer mágicas e acaba mutilando as próprias mãos. Mas, tão logo movimenta os tocos dos braços, novas mãos surgem. Era um mágico enfastiado do ofício. Assim, com o firme propósito de se matar, tira dos bolsos uma dúzia de leões para que o devorem. Mas nada acontece. Depois se atira num abismo, e logo um paraquedas se abre. Frustrado, compra uma pistola e puxa o gatilho contra o próprio ouvido, mas a arma se transforma num lápis. Certo dia, no entanto, o mágico escuta uma frase na rua, por acaso, que lhe traz uma nova esperança de romper com a vida. Um homem triste dizia que “ser funcionário público era suicidar-se aos poucos”. Como não podia escolher entre uma morte lenta ou rápida, o mágico se emprega numa Secretaria de Estado.
Estamos, por essa altura, em 1930 – ano amargo, conforme o narrador. Para ele, o ano mais longo até ali, desde que se tornara mágico ante o espelho da Taberna Minhota. Agora, porém, suas angústias se multiplicam, uma vez que o trabalho o obriga a um constante contato com seus semelhantes (coisa que pouco fazia quando mágico). Queixa-se do ócio na repartição, pois não tem sequer uma recordação de si mesmo que o distraia nessas horas vagas. Logo se apaixona por uma funcionária, mas não consegue se declarar.
Em 1931, tempo presente da narrativa, o ano começa com ameaças de demissão. A datilógrafa por quem se apaixonara o recusou. Com receio de ser um dos demitidos e de, consequentemente, ficar longe da mulher de quem se enamorara, vai ao chefe da seção e alega que não pode ser dispensado uma vez que alcançou a estabilidade, após 10 anos no trabalho. O chefe censura o seu cinismo, uma vez que todos ali sabiam que ele não tinha passado mais do que 1 ano trabalhando. O mágico, então, busca tirar dos bolsos um documento que comprove a lisura de seu procedimento, mas a magia não acontece e o que lhe vem às mãos é só um papel amarrotado com um poema inspirado nos seios da datilógrafa. Sua faculdade de fazer mágicas fora anulada pela burocracia. Os aplausos dos homens de cabelos brancos e das criancinhas agora não passam de um sonho.
Talvez a epígrafe continue sem fazer sentido depois do conto, mas vejamos porque esse “pobre e desvalido” deseja ser ouvido. No contexto dessa história, em que os concursos públicos ainda não eram uma prática corrente entre nós (as carreiras abertas ao talento e à meritocracia), ser funcionário equivaleria (e talvez ainda equivalha) a alcançar certa estabilidade na vida. Em literatura, esse topus é conhecido como Aurea Mediocritas, ou seja, a vida mediana seria, conforme o poeta Horácio, o que há de melhor para se buscar, uma vez que traria tranquilidade. A partir do conto, no entanto, percebemos que o narrador, ao alcançar essa posição na vida, perde toda a magia que o cercava. Sua escrita seria, justamente, uma tentativa de rememorar os anos em que caminhava entre os vivos, encantando a todos com sua magia.
No nível simbólico, aliás, a vida do narrador só começa, efetivamente, quando ele se descobre mágico diante do espelho de uma Taberna (antes disso não há qualquer memória da infância, da juventude ou da família) – e há de acabar, justamente, quando ele se torna um burocrata (afinal, queria se matar aos poucos). Busca, numa paixão não correspondida, a magia que perdera, mas não consegue recuperá-la. Por fim, paira sobre ele a ameaça da demissão – e então não será mais mágico, não será mais funcionário, não será mais nada.
Quero, por fim, sugerir que esse pobre e desvalido narrador busca nos dizer apenas isto: que todo o encanto de uma existência extraordinária (por mais penosa que ela seja) está fadado a desaparecer se nos limitamos à busca pela mediocridade. Não há magia alguma num cotidiano ditado pelos ponteiros do relógio e por uma atividade repetitiva e nada reflexiva. Afinal, o que buscamos, seja no Circo Andaluz, seja na Taberna Minhota, é fazer brilhar os olhos dos pequenos e arrancar aplausos das cabeças grisalhas que já viram de tudo e que já não se espantam com mais nada nesta vida.