Neste mês de julho, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando a literatura brasileira contemporânea, a partir da obra O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, publicado pela primeira vez em 2002.
Lourenço Mutarelli tem um percurso literário bastante inusitado. Seu universo ficcional, antes de seu debute em O Cheiro do Ralo, era o dos quadrinhos. De lá trouxe para o romance não só a construção da narrativa a partir do diálogo, mas também a capacidade de criar personagens e cenários imersos na cultura pop. Nesse sentido, dotada de uma linguagem urbana e atual, era esperado que a obra fosse adaptada ao cinema e estreasse na tela grande já em 2007. Muito se discute, aliás, acerca da relação entre literatura e cinema – mas não será esse o nosso objetivo aqui.
Como o título do romance sugere, a personagem central da trama é o cheiro insuportável de merda que exala de um ralo que fica no banheirinho dos fundos da loja de velharias e bugigangas de um sujeito que parece o cara do comercial da Bombril. Antes de tudo, é curioso notar que ninguém adentra a loja para comprar, senão para vender objetos “que têm história” por uma mixaria – justamente porque precisam de dinheiro. A voz narrativa (o dono da loja) resume seu negócio a isso: oferecer preços aviltantes a quem o procura para vender algo, para que ele possa revender por um preço melhor e auferir seu lucro.
O enredo é bastante simples. O narrador acaba de desmanchar seu noivado, pois se julga incapaz de gostar de alguém. Ao mesmo tempo, flerta com a bunda da balconista da lanchonete em que vai almoçar diariamente. Em sua loja entram e saem pessoas o tempo todo (quase sempre uma por vez) e ele, invariavelmente, se desculpa pelo cheiro do ralo. Sua maior preocupação é evitar que os clientes pensem que o cheiro do ralo seja dele. Num dado momento, chega a cogitar que o cheiro do ralo o esteja deixando doente e cansado e decide, não muito sabiamente, por cimentá-lo.
É preciso que fique claro, antes de tudo, que o ralo não passa de uma grande metáfora que perpassa todo o enredo. Nesse sentido, é impossível ao narrador resolver o problema do cheiro fétido que o incomoda durante todo o dia. Assim, o ralo engole o cimento. Um encanador não consegue resolver o problema justamente porque as orientações do dono da loja para o ralo são estapafúrdias. Diante desses contratempos, o narrador decide investir suas energias na bunda da lanchonete. Seu plano é simples: pagar para que a garçonete mostre sua bunda a ele. Ela, todavia, ao ouvir a oferta, o expulsa da lanchonete, pois confessa que, para ele, mostraria de graça. Ele insiste que prefere pagar. Entrementes, ao dar descarga no banheirinho, a merda volta e transborda da privada, pois o ralo havia sido fechado. Para o narrador, numa associação de acontecimentos bastante duvidosa, é a bunda da lanchonete o que faz o seu ralo feder.
Após ser expulso da lanchonete, calcula que sua vida tenha voltado aos eixos, mas é a partir desse ponto que sua existência entra numa espiral obsessiva por comprar pessoas desesperadas por dinheiro, para que elas se mostrem nuas a ele. O resultado será uma série de confusões que envolvem voyeurismo, brigas, polícia e um ralo que não para de feder. A partir daqui não é possível prosseguir revisitando o enredo sem correr o risco de comprometer o prazer da leitura. Assim, vamos ao que esta coluna se propõe – que é discutir literatura e trabalho.
Por aqui já tratamos do trabalho escravo, do funcionalismo público, das lutas e greves operárias e mesmo do trabalho durante a quarentena. Em 2002, o dono da lojinha do romance de Mutarelli não passava disso mesmo – um pequeno comerciante. Quase vinte anos depois, contudo, talvez seja necessário dizer o óbvio: que esse sujeito não é um microempreendedor, não é um empresário e tampouco dono dos meios de produção. O fato é que, nesse curto período, grassou, entre nós, um poderoso discurso que transforma donos do próprio negócio em pessoas socialmente superiores. Ora, trabalhar para si mesmo, como é o caso aqui, sem patrão ou algo parecido, continua sendo trabalho. A contradição, contudo, é justamente a regra nesse contexto – como permite entrever o texto de Mutarelli. A ideologia do sujeito que compra por pouco e vende por muito é aquela da classe dominante – para quem tudo e todos são coisas passíveis de precificação. A vida cotidiana do lojista, entretanto, segue idêntica à do trabalhador médio: almoçar numa espelunca barata, cujo lanche provoca desarranjos intestinais diários, enquanto encara a bunda da atendente sem o menor pudor; cumprir uma rígida rotina de horário de trabalho; e usar os sábados e domingos para descansar.
Essa contradição entre a efetiva posição que o sujeito ocupa na divisão social do trabalho (balconista) e aquela que ele julga ocupar (membro de uma elite empresarial) resulta num cheiro insuportável. O ralo está ali justamente para lembrar que essa combinação não pode chegar a bom termo. Ao querer comprar das pessoas não só seus objetos, mas também a sua nudez, transformada também em objetos específicos (os seios, a bunda, etc.), o narrador esbarra numa resistência inusitada a essa reificação. O interessante, todavia, não é que as personagens não queiram se submeter aos caprichos do narrador, mas que elas não admitam que ele pare de comprá-las quando bem entenda. Afinal, para as demais personagens, o dono da lojinha é um sujeito rico (embora não exista qualquer indício material dessa condição no romance), a quem elas podem recorrer (com bugigangas ou com o próprio corpo) quando a situação aperta.
Não é apenas o cheiro do ralo que acusa a contradição que apontamos. Há vários raciocínios que o narrador expõe a seus clientes que vexariam o mais sórdido dos conservadores de plantão. Um deles, por exemplo, é de que o lixo que produzimos é benéfico, uma vez que muita gente sobrevive em função dele – “O que seria dessa gente toda se não existisse o lixo? ”. Trocando em miúdos, a ideia é a de que o lixo produzido pelos ricos ajude aos pobres e, nesse sentido, não há razão para qualquer tipo de remorso social.
O engraçado é que esse tipo de raciocínio sai da cabeça de um sujeito que, mesmo na idade adulta, ainda acredita na lenda da loira do banheiro e em outras bizarrices do mesmo jaez. Notável que Lourenço Mutarelli tenha pintado, com tamanha precisão, esse tipo de “conservador de padaria” (de lanchonete, no caso), quase vinte anos antes do advento do tiozão do WhatsApp. E é esse sujeito caricato, que suborna policiais, que grita com os empregados (um segurança e uma recepcionista), que explora sua diarista e que trata as pessoas como coisas – esse sujeito mesquinho e incoerente é que se supõe superior diante daqueles que o cercam. Para que esse absurdo social em que vivemos seja funcional, entretanto, é preciso que as engrenagens ideológicas estejam perfeitamente azeitadas – como de fato estão. Conforme já exposto, todas as personagens exploradas pelo dono da loja, de uma forma ou de outra, partilham da mesma visão de mundo que ele. Em momento algum uma personagem sequer, isolada ou em grupo, esboça qualquer enfrentamento. Os trabalhos de feitiçaria da noiva desprezada, nesse sentido, não são nada mais do que uma tentativa de reaver a possibilidade do casamento com esse sujeito desprezível – e não uma afronta a ele. E mais não conto. Apenas que a sanção a essa ideologia da coisificação é, por parte do autor, abertamente negativa.