A tero inicia, neste ano de 2020, uma série de periodicidade mensal em que aspectos diversos do mundo do trabalho serão analisados a partir de um texto literário. A primeira publicação da série abordará o trabalho escravo no século XIX, conforme uma passagem das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Li, muito recentemente, a análise de um colega, publicada num dos jornais de maior circulação do país, sobre o filme Coringa (de que tratei em outro texto aqui no site e que pode ser acessado pelo link: http://www.terotcs.com/com-voces-o-coringa/) e que, de passagem, mencionava o moleque Prudêncio. Para sermos bem breves, Prudêncio aparece em dois capítulos das Memórias Póstumas de Brás Cubas (“O Menino é o Pai do Homem” [Cap. XI] e “O Vergalho” [Cap. LXVIII]). Trata-se de uma criança escravizada a que o menino Brás subjuga como se fosse sua montaria, com cabresto, chicotadas e xingamentos. Depois de um salto temporal considerável, o narrador reencontra Prudêncio (já alforriado pelo pai de Brás) em praça pública, castigando um escravo que comprara para servi-lo, alegando que o encontrara bêbado. Brás diz a Prudêncio que perdoe o escravo, ao que Prudêncio, com a submissão de sempre, aquiesce.
Conforme a análise do colega, de cujo nome não me recordo, Machado de Assis havia exagerado, pois algo do tipo não parecia a ele (crítico) verossímil – assim como o filme Coringa também padecia de certas distorções (também segundo o crítico). Sobre o filme já me manifestei. Sobre o romance também, sobretudo em aula, mas nunca por escrito. É chegado o momento, portanto – ainda que sucintamente.
O que uma parte dos leitores de Machado insiste em esconder é que o Bruxo do Cosme Velho era implacável com a instituição escravocrata. O argumento é sempre o mesmo lugar comum de que Machado tratou muito pouco do tema, de que escondia sua origem humilde e sua condição de mulato (como se isso fosse possível) e de que, quando tocava o dedo na ferida, tendia a exagerar. Ora, o fato de Machado não ter escrito nenhum romance cujo protagonista fosse escravizado não implica que tenha sido omisso em relação ao tema. O romance realista do século XIX é, conforme Fredric Jameson (The Antinomies of Realism), ao mesmo tempo, não só uma construção do processo histórico de que a burguesia é protagonista, mas também um produto desse mesmo processo de uma burguesia liberal em ascensão. E é sempre bom lembrar, conforme Roberto Schwarz (Ao Vencedor as Batatas), que se há algo que colide frontalmente com o liberalismo do século XIX é, justamente, a instituição escravocrata. Machado, portanto, tinha a ingrata tarefa de produzir uma arte tipicamente liberal e burguesa num contexto de escravismo arraigado. Afinal, como tratar da emancipação do indivíduo, conforme a promessa iluminista, se nossa produção dependia quase que totalmente do trabalho escravo?
Nesse sentido, inverossímil seria um protagonista escravizado num romance burguês. Ainda assim, Machado intuiu, de certa forma, que não poderia silenciar sobre a condição do homem e da mulher escravizados e, principalmente, sobre os efeitos deletérios que o sistema escravista de produção (conforme Jacob Gorender, em O Escravismo Colonial) teria sobre o mundo do trabalho no país – mesmo depois da transição para o trabalho livre. Assim, não há nada de inverossímil no fato de um homem alforriado comprar para si mesmo um escravo – e a história registra inúmeros casos semelhantes. Para entender o processo é preciso ter em mente que o regime de trabalho, nesse contexto, é escravocrata – ou seja, não é possível produzir absolutamente nada prescindindo do trabalho escravo. Em outros termos, os homens livres, no século XIX, possuíam escassos meios de ascensão social (a não ser a herança e o matrimônio), uma vez que o trabalho assalariado não era uma possibilidade. Não há, nesse contexto, a promessa burguesa das carreiras abertas ao talento. O que prevalece, para os homens livres, é o apadrinhamento e o favor.
Prudêncio, portanto, se comporta como qualquer homem livre de seu tempo – assim que encontra os meios, compra um escravo que faça o trabalho necessário por ele. O que consterna e admira alguns críticos é que Machado tenha desnudado esse mecanismo de forma tão direta. Pior, que tenha feito o prognóstico certeiro de que a instituição da exploração de um homem por outro estaria arraigada em nós no porvir.
Um exemplo? Dia desses, um amigo de longa data veio me contar, muito consternado, que nunca ele e a esposa quiseram contratar alguém para executar as tarefas domésticas na casa deles. Receberam, todavia, a oferta de uma jovem, desempregada, para que prestasse seus serviços a eles. Ao recusarem, ela pediu a eles que então a indicassem como diarista a pessoas conhecidas. E assim ele e a esposa procederam. O problema é que ninguém contratava a jovem por receio – alegavam que não havia boas referências sobre a moça. Como a situação de desemprego era prolongada e dramática fizeram um pacto: o casal contratou os serviços da jovem, quinzenalmente, para poderem atestar as tais boas referências que pediam – e depois que as pessoas começassem a contratar os serviços da diarista ela não precisaria mais trabalhar para o casal. E foi exatamente o que ocorreu. Como ela trabalhasse na casa de meu amigo, as pessoas perderam o medo [injustificável] de contratá-la [agora era possível estar certo de que era uma pessoa de confiança] e tão logo sua agenda de faxinas cresceu, ela deixou de prestar seus serviços, embora continue frequentando a casa dele ocasionalmente, para um bate-papo e um café. Recentemente, ela conseguiu um emprego fixo, com carteira assinada, e deixou suas faxinas de lado (como o casal sempre a incentivou a fazer). Numa última visita que foram fazer a ela, em seu apartamento, por ocasião das festas de fim de ano, meu amigo me contou, com certa indignação, que foi possível perceber que agora quem tem uma diarista é ela – a quem, por sinal, ela não paga em dinheiro, senão em troca de algum favor.
omo ele quisesse minha opinião, disse que não deveria existir, nem de minha parte, nem da dele, nenhuma acusação pessoal contra a jovem – como se ela estivesse agindo de forma errada. A partir de seu relato, o que pretendo ilustrar é que, assim como Prudêncio, a diarista, tão logo se viu em condições (ainda que escassas), reproduziu o sistema opressor de trabalho ao qual ela fora submetida até então (e de que tanto reclamava ao meu amigo). Se a pergunta é como pode um negro escravizar outro negro; como pode uma diarista explorar outra diarista, Machado responde que assim é (e que assim será) porque o que nos governa é o sistema produtivo – seja ele escravista, seja capitalista. Nesse sentido, o maior problema para uma parcela considerável da crítica é justamente admitir que é preciso enfrentar o debate sobre o processo social (oriundo do modo de produção), estabelecendo suas implicações na forma literária. Discutir a forma pela forma, como se a arte fosse uma construção puramente estética, nem edifica, nem serve para coisa alguma.
Minha proposta, portanto, de ora em diante, é a de usar este espaço para, justamente, discutir literatura nos termos propostos. Até breve!