Literatura e Trabalho

Literatura e Trabalho - Fevereiro/2020

Neste mês de fevereiro, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando a figura do funcionário público nas letras pátrias, a partir do romance O Amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos.

Na literatura brasileira sempre houve, entre seus autores, funcionários públicos. Também seria possível afirmar que, no Brasil, entre os servidores, sempre existiram escritores — mas não creio que o sentido seja o mesmo. De qualquer forma, os professores de literatura sempre fazem questão de lembrar que Machado de Assis era funcionário público, que Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto eram diplomatas de carreira – e tantos outros exemplos. Há, todavia, dentre esses funcionários autores (ou seriam autores funcionários?) alguns que por vezes tenham abordado o próprio cotidiano da repartição em seus escritos. Há o caso notório de Lima Barreto (que certamente será apreciado nesta coluna em algum momento) e outros menos, como o do contista Murilo Rubião. Neste mês, gostaria de lembrar, porém, o pequeno romance em forma de diário a que o funcionário público Cyro dos Anjos deu à luz em 1937: O Amanuense Belmiro.

O Belmiro do título é um servidor, como fora Cyro dos Anjos ao longo de toda sua vida. As semelhanças entre ambos, contudo, param por aí. Cyro ocupou postos de destaque no serviço público. A personagem de Belmiro, por sua vez, não passa de um amanuense (a quem cabia fazer cópias, registros, cuidar da correspondência etc. — a função não existe mais no serviço público).

Se a burocracia burguesa e o advento do concurso público prometiam carreiras abertas ao talento, além de respeito ao mérito, não será exatamente isso que o relato de Belmiro há de nos apresentar. O Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) só seria uma realidade em 1938 — em pleno Estado Novo. Até então as práticas clientelistas e a administração patrimonialista eram resquícios persistentes, herdados pela república de 1889, desde a monarquia — e que não deixaram de existir, pois a reforma de Vargas não abarcava todo o serviço público.

Não será, todavia, essa distinção entre um servidor devidamente concursado e um servidor comissionado em cargo técnico (ao invés de político) a razão de ser das angústias de Belmiro. Seu maior problema é existencial. Em seu quarto capítulo (ou parágrafo, uma vez que os capítulos numerados são precedidos pelo símbolo §), tenta justificar a escrita de seu diário:

Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de trinta e oito anos. E isso é razão suficiente. Posta de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama autonomia no espaço. Ai de nós, gestantes. (O Amanuense Belmiro, 6ª ed. Globo, 2006, p. 25)

A imagem de um autor grávido não é lá uma novidade, mas a força da metáfora não estará de todo perdida. Belmiro é um solteirão, morador de uma casa modesta, em uma rua pacata, na companhia de duas irmãs bastante reservadas. A confissão acima é feita na noite de natal. O rebento de Belmiro, no entanto, terá impacto significativamente menor na história universal. O seu diário é totalmente desprovido de qualquer ação que prenda o leitor numa trama infalível. O que de mais relevante ocorra talvez seja uma paixão de carnaval que toma conta do pobre amanuense. Nada além disso. Trata-se, no entanto, de um livro que prende o leitor do início ao fim. Se isso é possível mais de oitenta anos depois de sua publicação, suspeito que alguma verdade ainda resida nas linhas desse diário.

De fato, o que Belmiro busca é um sentido para sua existência. Se a expectativa de vida, à época, não passava de quarenta anos, aos trinta e oito o amanuense estaria, tecnicamente, no fim de sua jornada. Como é possível notar em poucas páginas, sua rotina de copista está muito aquém das possibilidades intelectuais desse literato provinciano. Não quero com isso afirmar que Belmiro seja um gênio oprimido pelo trabalho — afinal, ele é apenas um amanuense. Sua força, todavia, reside justamente na mediocridade da personagem. Ao tentar construir um sentido para uma vida mesquinha e pacata a partir de fatos cotidianos, Belmiro nos revela a poesia do dia a dia. Sem que seu trabalho seja negligenciado, o amanuense é capaz de escrever um diário em que tenta resgatar (do fundo do poço do anonimato em que fora jogado pela vida de burocrata) uma existência que faça algum sentido.

Fosse hoje, talvez ele passasse as horas vagas, entre um pedido e outro do chefe, navegando por sites de compra na internet a fim de preencher seu vazio existencial. Tanto ele, com a escrita de seu diário, quanto nós, com nossas compras desnecessárias, naufragamos nessa tentativa de preencher o cotidiano com um sentido louvável e edificante. Talvez seja justamente isso que possibilite certa identificação entre o leitor e Belmiro. Há, entretanto, uma diferença importante: apenas Belmiro tem certeza de que falhou na vida, enquanto nós permanecemos presos à ilusão de plenitude que cada pacote entregue pelos correios em nosso endereço proporciona.

O que Belmiro nos oferece, sobretudo, é uma total desmistificação da rotina de trabalho de um funcionário de repartição. E, num contexto em que a demonização do serviço público parece prosperar, o livro de Cyro dos Anjos talvez seja extremamente necessário. O senso comum criou, afinal, ao longo dos anos, uma mítica de que servidores públicos, sem qualquer distinção, sejam privilegiados. Mesmo o conceito de alienação do trabalho costuma ser, erroneamente, identificado apenas com uma linha de produção massacrando o operário que, por sua vez, não faz a menor ideia de onde se encaixam aqueles milhares de peças idênticas que produziu durante o mês. Ora, o trabalho burocrático, muitas vezes tido como uma atividade intelectual mais prestigiada do que o trabalho na linha de montagem, também é alienante. Não cabe aqui discutir as condições de trabalho em um galpão escaldante de uma metalúrgica e o escritório nem sempre confortável de uma repartição pública. Esse tipo de distinção dilui o debate que nos interessa: tanto num caso quanto no outro a lógica capitalista nos rouba o tempo livre, o ócio e o lazer. Tanto o operário quanto o burocrata vendem seu tempo e buscam um sentido há muito perdido para suas respectivas vidas numa espiral de consumo de uma enormidade de bens de que mal conseguem usufruir. Afinal, que sentido faz pagar por um automóvel novo, cuja função primordial é levá-lo do caminho de casa para o trabalho por um breve período do dia, enquanto passa a maior parte da semana parado no estacionamento da empresa ou na garagem de sua casa? Por que pagar por um serviço de tv à cabo, ou de streaming, se passamos a maior parte de nossa vida cumprindo nossa jornada de trabalho?

Não cabe aqui, ademais, encarar a infindável tarefa de explicar as inúmeras variáveis e distinções existentes no serviço público (para começo de conversa, os poderes executivo, legislativo e judiciário tratam seus servidores de modos muito diferentes). Talvez o único “privilégio” que os una a todos seja a estabilidade no emprego. E as aspas são propositais, afinal a estabilidade é não só um direito do funcionário, mas também uma garantia para quem usufrui do serviço prestado por ele. Caso o funcionalismo ficasse totalmente à mercê das flutuações eleitorais que ocorrem a cada quatro anos, certamente o serviço prestado estaria todo comprometido. O que ainda garante um mínimo de qualidade no serviço entregue ao cidadão é, justamente, a continuidade que só a estabilidade do servidor pode assegurar — servidor que, por sua vez, ocupa seu cargo conforme o mérito por ter estudado e de ter sido aprovado em concurso público. Existe, claro, a figura do servidor comissionado, cuja função é política e que ocupa seu posto mediante indicação — e que também cumpre uma função importante. Nesse caso, entretanto, não há que se falar em estabilidade (a não ser que se trate de funcionário de carreira designado para cargo em comissão – perceberam como é complicado?). E é aí que a confusão geral se estabelece. A maior parte das críticas dirigidas ao funcionalismo não fazem qualquer distinção entre essas realidades (a do servidor de carreira e a do servidor indicado politicamente). Assim, nascem as propostas absurdas de acabar com a estabilidade e com os salários estratosféricos do funcionalismo. Ocorre que o servidor que goza de estabilidade não necessariamente recebe um supersalário. Ademais, a título de ilustração, há distorções de monta: um servidor do poder executivo (e aí estão incluídos professores, atendentes do INSS, etc.), por exemplo, pode receber apenas a metade (ou menos) do que recebe um colega concursado do poder legislativo e, sobretudo, do poder judiciário — e isso considerando a prestação de serviços da mesma natureza e que requeiram a mesma qualificação em qualquer um dos casos. Não é possível, portanto, tratar a todos da mesma forma.

Se há problemas no funcionalismo, não é destruindo direitos e privatizando a prestação dos serviços todos que a questão será resolvida. Há também um mito bastante difundido do funcionário ocioso. Ora, ao longo da vida, trabalhei tanto no setor privado, quanto no setor público. Garanto que momentos de ociosidade existem em ambos os contextos — a diferença reside na forma de lidar com ela. Muito superficialmente, é possível afirmar que diante da iniciativa privada é preciso fingir que se está ocupado o tempo todo, enquanto no serviço público, em determinados contextos, isso é perfeitamente desnecessário (e suponho que a estabilidade tenha seu papel nisso). E é aí que Belmiro ressurge. O amanuense se recusa a fingir uma existência que se supõe plena e realizada, num contexto em que seu precioso ócio lhe é roubado. Assim, intenta uma pequena e solitária revolta que, por fim, não resultará em nada — apenas num diário lírico. Esse fracasso, todavia, também educa. Se sozinhos podemos pouco, ou quase nada, juntos poderemos muito, senão tudo.