Neste mês de agosto, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando o livro de estreia da escritora estadunidense Alice Walker, A terceira vida de Grange Copeland (The Third Life of Grange Copeland), publicado pela primeira vez em 1970, e que acaba de ser traduzido para o português, em uma parceria entre a Editora José Olympio e a TAG – Experiências Literárias.
Alice Walker concluiu a escrita de seu livro de estreia aos 25 anos, três dias antes de dar à luz sua primeira e única filha. Foram quase quatro anos de trabalho literário entre seus afazeres universitários (primeiro como aluna, depois como professora) e sua militância política pelos direitos civis. A terceira vida de Grange Copeland, conforme a própria autora, era uma tentativa de compreender três momentos cruciais para a história dos afro-americanos: a escravidão; os anos de liberdade e segregação que se seguiram à Guerra Civil; e, por fim, a luta pelos Direitos Civis, entre as décadas de 1950 e 1960. Walker consegue inter-relacionar esses três momentos de forma magistral, contando a triste história da família Copeland ao longo de três gerações.
O escopo da coluna, todavia, limita-se à questão do trabalho e, por isso, não pretendo exorbitar o tema – mas fica ao leitor o convite para se aprofundar na obra, riquíssima sob todos os aspectos. Assim sendo, nos deteremos na jornada de Brownfield Copeland. Para tanto, é preciso voltar ao início. Grange Copeland era um trabalhador rural, casado com Margaret. Sua vida estava predestinada a produzir em terra alheia, enriquecendo o proprietário, enquanto o que ganhava mal dava para seu sustento e o de sua família. Tudo começa a mudar quando a irmã de Margaret aparece com sua família para uma visita, vinda do Norte, num carro enorme e falando dos encantos da cidade grande. A partir de então, tudo o que Margaret deseja é seguir os passos da irmã, em busca de uma vida melhor. Brownfield, o pequeno filho do casal, assiste a tudo sem compreender exatamente o que se passa. Grange, por sua vez, rejeita a ideia peremptoriamente, mas já fora semeada ali uma possibilidade que até então era desconhecida dele. Ao longo dos anos, o casal Copeland se desentende com frequência e Margaret, numa forma de se vingar de Grange, acaba tendo um filho fora do casamento. Grange, sem poder perdoá-la, decide abandonar Brownfield e a mulher com seu filho bastardo e, por fim, faz aquilo que jamais cogitara: foge para o Norte para viver sua segunda vida.
Brownfield, naquela altura um garoto com não mais do que quinze anos, tenta seguir os passos do pai, que nunca fora capaz de um gesto de afeto para com o filho. O jovem, entretanto, não completará sua jornada, pois acaba se instalando com Josie, uma mulher mais velha, proprietária de uma estalagem e que, mais tarde, Brownfield saberá, fora amante de Grange, seu pai. Conforme cresce, Brownfield acaba por ter seus próprios planos e acaba se casando com Mem, sobrinha de Josie. Mem havia ido à universidade e tentava educar Brownfield, o que, a princípio, o encantava e fazia com que ele admirasse a esposa. Para ganhar a vida, Brownfield se decide por uma parceria rural e vai morar com a mulher numa tapera oferecida pelo proprietário. Ali, o casal tem três filhas: Daphne, Ornette e Ruth. O idílio, contudo, não resistirá às humilhações e privações impostas pelo proprietário da fazenda. Extenuado de tanto trabalho e de tão pouco resultado, Brownfield deixa de lado todo o afeto que dispensara à filha mais velha, Daphne – afeto que Ornette e Ruth jamais conhecerão. A esposa, Mem, antes admirada por sua beleza e educação, passa a ser menosprezada por ele, por sua magreza e arrogância. Mem vive propondo que a família se mude para a cidade, onde poderão ter empregos melhores, salários melhores e, assim, terão condições de pagar o aluguel de uma casa decente, com banheiro na parte de dentro, com um telhado sem buracos e paredes sem frestas e, ao mesmo tempo, enviar as meninas para uma escola. Mem conseguirá realizar seu sonho, mas o custo disso será altíssimo – e não só para ela. Não pretendo, todavia, entrar em detalhes, a fim de não comprometer uma das cenas mais poderosas que Walker construiu no romance.
Na cidade, o trabalho de Mem numa fabriqueta rende a ela, em uma semana, mais do que Brownfield consegue receber em um mês. Brownfield, que aprendeu com os brancos como um homem deve ser, não aceita esse estado de coisas e planeja uma vingança. Logo que Mem se encontra doente e sem condições de ir ao trabalho, o marido, ao invés de dispensar seus cuidados à mulher, aproveita-se de sua fraqueza, vende todos os móveis da casa e instala a família em uma tulha úmida e ainda cheia de feno, em uma outra fazenda, para que fique claro quem é que manda. O problema é que a ilusão de poder de Brownfield se restringe, no máximo, à sua família. Na fazenda em que trabalha agora, a relação ainda é a de meação.
Figura muito presente também no Brasil rural, o meeiro era, de fato, o responsável por fazer a terra produzir sem que, com isso, pudesse usufruir de qualquer fruto de seu trabalho. Na prática, tal relação de trabalho significou, no sul dos Estados Unidos (e também no Brasil), uma continuação da escravidão, uma vez que o trabalho era mal remunerado, apenas com comida e um teto, e prendia o agricultor numa dívida eterna, mormente “paga” quando o proprietário trocava seu meeiro com outro fazendeiro vizinho por um trator (ao menos por uma estação) ou algo parecido, como se esse parceiro fosse pouco menos que um escravo, pois já chegava no seu novo posto predestinado a uma dívida impagável.
Quem não aceita esse novo estado de coisas agora é Mem. Desta vez, não se dobra ao marido e, tão logo se recupera de sua enfermidade, segue trabalhando na cidade – ganhando mais do que ganhava em seu emprego anterior. Brownfield, já farto do abuso de poder econômico que o patrão impunha a ele, decide se vingar da arrogância de uma mulher que ousava ganhar mais do que ele e que, por isso, queria dizer o que era melhor para suas filhas. A vingança custará a Brownfield dez anos na penitenciária – dos quais pagará por apenas sete.
A crítica, de forma acertada, chama a atenção para todos os males que o alcoolismo, o racismo e o sistema patriarcal causam às famílias de afro-americanos do sul do Estados Unidos. Mas se esquecem de tocar num ponto fundamental: que a divisão social do trabalho que emerge após a Guerra Civil é o que, de fato, sustenta todo esse sistema violento. E o próprio Brownfield sabe disso ao refletir, na prisão, que sua única ambição na vida era ser um homem: “Nunca que eu quis ser arrendatário, nunca que eu quis trabalhar pros outros, nunca que eu quis viver perto dos branco pra eles se meter na minha vida sem eu nem poder dizer nada.” Brownfield nunca quis nada disso, mas (ainda que livre) não teve escolha, uma vez que, no sistema produtivo em que nasceu, seu papel já estava definido. Por ser preto, por ser analfabeto e por ser pobre era possível ao homem branco desumanizá-lo, tratá-lo de modo desigual, a partir de suas diferenças. Assim, todo o ódio que Brownfield sente por não poder ser o que queria, um homem, acaba sendo despejado contra a sua própria família, que o cobra por dias melhores diuturnamente, sem compreender que a culpa por sua miséria não é uma responsabilidade exclusivamente sua, mas de um sistema produtivo que os oprime a todos. Mem, por exemplo, embora habilitada para ser professora, conseguia, no máximo, trabalhar na linha de produção de uma fabriqueta ou como empregada doméstica.
Quem tenta reverter esse estado de coisas, em sua terceira vida, ao voltar do Norte, é, justamente, Grange Copeland. O problema é que seu retorno tardio já havia causado um estrago irreversível não só na vida de seu filho, mas também na sua própria – e que, ademais, já não podia convencer ninguém de que, no Norte, a vida das pessoas como ele era tão dura quanto na Georgia.