Neste mês de abril, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando o mundo do trabalho num contexto de quarentena, a partir de Ensaio Sobre a Cegueira (1995), de José Saramago – escritor português, Prêmio Nobel de Literatura em 1998.
Desde o mês de março o Brasil foi forçado a entrar em quarentena por conta de uma pandemia cujas proporções e alcance são, em inúmeros sentidos, inéditos na história da humanidade. Estou a me referir, para que fique claro, à rapidez com que o vírus se espalhou pelo mundo e a seus efeitos na economia global – e não ao seu poder de destruição. Nesse particular, a gripe espanhola, por exemplo, que assolou o mundo entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, infectou mais de 500 milhões de pessoas (um quarto da população mundial à época) e matou, conforme estimativas, entre 17 e 50 milhões de pessoas (mas é possível que tenha sido responsável por até 100 milhões de mortes). Ainda não sabemos quanto tempo a atual pandemia vai durar e se sua onda avassaladora terá as mesmas dimensões da pandemia de 100 anos atrás (em menos de 6 meses, a COVID-19 já contaminou mais de 3 milhões de pessoas e matou pouco mais de 200 mil ao redor do mundo), mas a forma de se proteger dela por meio de uma quarentena tem causado muita controvérsia, sobretudo no Brasil.
De fato, há 100 anos, só houve quarentena efetiva em algumas regiões do Pacífico, onde, não por acaso, nenhuma morte pela gripe foi registrada. Agora, contudo, a quarentena é mundial – e basta comparar os números de 1920 aos de hoje para perceber sua real efetividade na contenção da pandemia. Tanto é que, nos países em que a quarentena tardou, como nos Estados Unidos, a dimensão do estrago foge a qualquer razoabilidade – dos atuais 3 milhões de infectados no mundo, 1 milhão está nos EUA. A razão da controvérsia, quase sempre, é de ordem econômica. Se os trabalhadores entram em quarentena, a produção para, o consumo é suspenso e a economia entra em recessão. Nesse sentido, há algumas experiências literárias que se debruçam, justamente, sobre o estado de quarentena. Recorro, neste mês, a um romance em língua portuguesa, publicado há 25 anos (e que virou filme em 2008) – O Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago.
Antes de tudo, é certo que já alguém aí esteja a questionar, e com razão, o seguinte: se o tema é Literatura e Trabalho, por que discutir a quarentena? Ora, não se tem falado em outra coisa senão em trabalho em casa durante a quarentena – ao menos para aqueles trabalhadores que podem fazer o home office. Muita gente, aliás, tem relatado que o volume de trabalho, em casa, tem sido muito superior se comparado ao período de normalidade, principalmente por conta do acúmulo de obrigações – filhos, cuidados com a casa e o trabalho em si. Ademais, mesmo a distinção entre dias úteis e feriados (ou mesmo férias) não têm sido rigorosamente respeitados, uma vez que abundam demandas superiores fora do horário usual dos respectivos expedientes. Há, por fim, uma verdadeira paranoia acerca da manutenção do pagamento dos salários – mesmo daqueles que continuam trabalhando de casa.
Passemos, agora, ao romance de Saramago. Muito resumidamente, trata-se de uma cegueira branca que logo se torna pandemia e causa pânico generalizado. Uma das primeiras pessoas a cegar é, justamente, um médico oftalmologista que atendera o primeiro dos cegos em seu consultório. Por dever de ofício, logo comunica às autoridades do ocorrido com ele. Ato contínuo, é imposta uma quarentena rígida e os cegos são compulsoriamente levados a espaços militarmente controlados. No caso do médico e de sua esposa (a única a não cegar na história toda), ambos são levados a um manicômio abandonado, junto de outras pessoas acometidas pelo mar de leite. A princípio são vinte, mas logo serão duzentos e sessenta só ali.
Embora a quarentena aqui seja de natureza diversa da que estamos vivendo (uma vez que devemos permanecer em nossas casas), as semelhanças com o cenário atual são estarrecedoras. Não pretendo, todavia, me ocupar delas – pois são as diferenças que me chamam a atenção. A primeira coisa a notar é que nenhuma personagem tem nome. Apesar de estarem todas impossibilitadas de trabalhar em decorrência da cegueira, são invariavelmente identificadas pelo narrador ou conforme a profissão que exercem, ou conforme alguma característica física ou moral. Assim, temos o médico, a mulher do médico, a mulher dos óculos escuros (uma prostituta), o velho com a venda preta, o homem da pistola, o motorista de táxi, o menino que chama pela mãe, etc. Do mundo do trabalho, portanto, só resta, quando muito, o nome da profissão que cada um exercera até ali. Vale notar que apenas os cegos e os infectados (que tiveram contato com os cegos, mas que ainda não cegaram) são enviados para a quarentena. O restante das pessoas segue a vida normalmente, como se nada houvesse acontecido. Nem é preciso dizer que esse estado de coisas levará, muito rapidamente, a uma cegueira mundial e generalizada – ninguém escapa.
Antes que essa cegueira total seja consumada, contudo, a quarentena revela o que há de mais nefasto nas relações humanas. Se a princípio as pessoas vão se desprendendo do tempo marcado pelo relógio e se debruçam sobre o radinho de pilha muito mais para ouvir música do que notícias, não demora muito que se trave uma verdadeira batalha por comida. Os soldados não intervêm e seguem o adágio: “morrendo o bicho, acaba-se a peçonha”. Para eles, portanto, o melhor é que os cegos todos morram... até que são os próprios soldados a ficarem cegos.
Antes que o manicômio seja incendiado e os cegos percebam que não há mais ninguém ali que impeça a saída de todos eles daquela quarentena, já está explícito na narrativa que essa cegueira branca não é um mal físico, senão um mal do espírito. A parábola de Saramago, como o próprio autor costumava esclarecer, é sobre a cegueira da razão. Trata-se, é claro, de uma razão instrumentalizada com o fim de justificar o absurdo da condição humana, a ponto de estarmos todos cegos diante dela. Assim, é só a partir do momento que todos efetivamente estão cegos no romance, exceto pela mulher do médico, que as coisas começam a mudar. Não há mais como agir naturalmente, fingindo que nada acontece. O caos se impõe e só a mudança de comportamento da humanidade poderá fazê-la enxergar novamente.
Voltando à pandemia que nos assola, há no Brasil uma controversa batalha discursiva entre os que insistem que é preciso preservar a normalidade e os que defendem seguir a recomendação de quarentena. Fingir que nada está acontecendo me parece uma cegueira voluntária eivada de estupidez. O problema é que de pouco vale uma quarentena em que apenas parte da população pode efetivamente ficar em casa (os que são contra ela inclusive), enquanto uma massa de desempregados e trabalhadores cujos direitos foram sumariamente despedaçados nos últimos quatro anos se veem totalmente desamparados pelos poderes estabelecidos. Tanto pela histórica lição de 100 anos atrás, quanto pela lição literária é forçoso reconhecer que, mantida a controvérsia, uma tragédia humanitária estará em curso. Ainda que essas lições não existissem, o que tem ocorrido na Itália, no Irã, e nos Estados Unidos (sem contar o continente africano, sobre o qual a imprensa pouco ou nada noticia) é mais do que suficiente para que se aprenda algo com a pandemia. Mas preferimos, no Brasil, permanecer todos cegos.