"Eu, Daniel Blake" é uma produção britânico-franco-belga de 2016. O filme foi premiado já em sua estréia, em Cannes, com a Palma de Ouro. A história está centrada no drama do protagonista, Daniel Blake (vivido por Dave Johns), um carpinteiro inglês (o filme se passa na Inglaterra) de quase 60 anos que sofre um ataque cardíaco e tem a indicação médica de parar de trabalhar. Porém, o governo não aceita a recomendação médica e solicita que Blake continue buscando trabalho enquanto recebe o auxílio-desemprego. A situação é ultrajante: ele precisa fingir que procura emprego até que a revisão do processo de sua pensão definitiva seja resolvido.
Para dificultar ainda mais, o governo está "digitalizando" seus processos. O atendimento, tradicionalmente realizado por pessoas nos postos de atendimento, não executa mais boa parte do processo para a obtenção do "benefício". Daniel Blake é responsável por fazer seu próprio cadastro via formulários eletrônicos na Internet, sendo que ele não domina o uso de um computador. Além das intermináveis chamadas aos serviços de teleatendimento para acompanhamento do processo.
Há muitas análises que podemos fazer do filme e da realidade que ele retrata ou indica. Embora o enfoque recaia sobre a história individual do protagonista, trata-se de um desafio coletivo típico de nossa contemporaneidade. Daniel Blake é, antes de tudo, um cidadão. Podemos também discutir a burocracia do Estado na entrega dos benefícios e direitos aos cidadãos. Nesse sentido, quando se trata de direitos, será mais relevante descobrir fraudes sistêmicas ou atender necessidades vitais como a do protagonista do filme? Ou, ainda, discutir como todos esses procedimentos burocráticos associados à "digitalização" dos serviços públicos podem dificultar ainda mais o acesso dos cidadãos aos seus direitos. Discutir também o contexto de um Estado neoliberal reduzido à oferta dos serviços e dos direitos e que talvez "se esconda" atrás da burocracia e da "digitalização" para oferecer cada vez menos aos cidadãos. Enfim, as discussões são muitas, o que já demonstra a profundidade da proposta do filme.
Aqui, gostaria de me ater a uma discussão sobre os desafios da oferta de serviços e soluções digitais. A digitalização de serviços, seja no setor público, seja no privado, representa, por um lado, redução de custos operacionais, e, por outro, abrangência de atendimento, democratização de acesso por meio de soluções inovadoras e, se bem projetado, conveniência para o cidadão. Infelizmente, a promessa de redução de gastos será, na maior parte das vezes, o argumento motivador principal para boa parte dos projetos. No entanto, podemos pensar em soluções interessantes e democráticas que só puderam ser viabilizadas com o uso da tecnologia. Um exemplo brasileiro é o SISU (Sistema de Seleção Unificada do Ministério da Educação). Sem o uso da tecnologia, não seria possível realizar a democratização da distribuição das vagas das universidades por todo o país. Além disso, a digitalização dos serviços oferece ao cidadão a possibilidade de evitar deslocamentos (consequentemente, gastos financeiros e de tempo), o que pode ser muito importante. O acesso a dados públicos também só é possível com a digitalização dos serviços e das informações, oferecendo aos cidadãos transparência quanto a gestão dos recursos.
Precisamos, todavia, ter consciência de que o entendimento desta digitalização como uma "conveniência" não é uma unanimidade para todos os públicos e em todas as situações. Há aqueles que, como Daniel Blake, não são familiarizados com a tecnologia e há situações em que o "olho no olho" é muito melhor e mais eficiente.
Outro ponto importante é que nem sempre os sites, sistemas, formulários digitais e as URA's (Unidade de Resposta Audível - aquele "digite 1 para..."), foram bem projetados e testados devidamente para atender aos seus públicos. Projetar bem essa solução é o que podemos chamar de "desenho do serviço". Se você for usuário desses serviços (e provavelmente é) poderá observar que, em alguns casos, você se sente perdido e inseguro. Quando um processo é digitalizado, ele transmite boa parte da responsabilidade de seu sucesso e do trabalho para o usuário do sistema - auto-serviço.
Porém a responsabilidade por um eventual equívoco no preenchimento, upload de arquivos, entre outros, não é sempre do usuário. O que geralmente acontece é que os responsáveis por implementar o serviço se entusiasmam com a tecnologia e os ganhos que poderiam ter com ela, mas se esquecem de pensar nas pessoas que estão do outro lado e em sua "experiência". Pensar nessas pessoas, nas suas necessidades e capacidades é o que podemos chamar de centralidade do cidadão. Se o serviço é feito para o usuário se auto atender, é preciso que seja projetado para que ele efetivamente entenda, consiga realizar o que deseja e não viva frustrações ou dúvidas. Serviços mal projetados fazem com que as pessoas não consigam "cumprir a tarefa": se cadastrar para um benefício, solicitar um documento, emitir uma declaração, se inscrever em uma prova, entre outros. O ponto é que, na maior parte dos casos, essa "tarefa" é fundamental para a vida daquele indivíduo naquele momento. Precisamos ser muito sensíveis a isso!
Como já dito, digitalizar serviços, em geral, representa ganhos financeiros consideráveis para as empresas e para o setor público. Serviços digitalizados significam menos funcionários presencialmente em postos de atendimento (e preparar pessoas para atender bem face-a-face é sempre caro). O ponto é que oferecer uma boa experiência digital aos cidadãos também precisa de muito planejamento, pesquisa, testes e reflexão - e, claro, bons profissionais envolvidos.
No setor público, o desafio pode ser ainda maior, principalmente se pensarmos na realidade de um país como o Brasil. A diversidade de público que usará aquela determinada solução é enorme (classe social, cultural, nível de escolaridade, analfabetismo funcional, digital e acesso à tecnologia e equipamentos, por exemplo). Enfrentar essa complexidade requer tempo, novos modelos de trabalho e muitas ferramentas diferenciadas que hoje são usadas pela economia digital - e, mesmo lá, deixam a desejar, em muitos casos.
O melhor exemplo de bom design de serviço e experiência digital (e, também o mais conhecido) são os produtos e soluções do Google. Dificilmente, você fica perdido ou sem saber o que fazer diante de uma tela de qualquer produto ou serviço da gigante. Dificilmente, mas não impossível. A companhia sabe que suas soluções são imperfeitas e que precisam ser aprimoradas continuamente. Para tal, oferece campos de feedback para que os usuários possam relatar problemas ou necessidades que os produtos não atendam, faz monitoramento quantitativo do uso para avaliar potenciais melhorias. Eles realizam estratégias de lançamento de suas soluções em formatos Alpha e Beta, isto é, segmentam aqueles que conhecerão primeiro as soluções, mas também serão responsáveis por reportar erros e falhas de qualquer novidade. Enfim, não se trata de endeusar a companhia, muito pelo contrário: poderíamos fazer um artigo aqui de muitas críticas a eles. Também não se trata de opor o setor público ao setor privado e concluir, rapidamente, que o segundo seria mais eficiente e eficaz que o primeiro. A crítica aqui é justamente sobre uma lógica de eficiência que desumaniza a relação com o cidadão e deixa de entregar a ele aquilo de que mais precisa.
A discussão sobre a implantação de soluções digitalizadas é importante para que tenhamos claro que oferecê-las é um trabalho de contínuo aperfeiçoamento. Se deixamos de treinar e contratar pessoas para fazerem aquele serviço presencialmente, precisaremos ter outras pessoas pensando e projetando aquilo que será desenvolvido, outras que estarão checando se o que foi colocado "no ar" atende adequadamente aos usuários, outras que analisarão os dados quantitativos de uso, outras que avaliarão tecnicamente a performance da solução. Colocar uma solução "no ar" e achar que está tudo resolvido é a pior coisa que se pode fazer - é preciso continuar acompanhando e pensando a experiência do cidadão continuamente.
Mas, o que é pensar a experiência do cidadão? É colocá-lo no centro das suas decisões no desenvolvimento de qualquer serviço (e, claro, das políticas e da legislação, mas me abstenho dessa discussão por aqui, até porque não tenho domínio dela). Considerar a centralidade do cidadão é pensar continuamente se a sua solução o atende adequadamente. É não desprezar a diversidade de públicos e ter consciência de que, em um primeiro momento, nem todos vão, necessariamente, aderir e se sentir confortáveis em interagir com uma máquina. É ter a consciência de que as soluções tecnológicas podem parecer vantajosas e convenientes, mas isso não significa que todos e todas irão "se deslumbrar". É saber que as pessoas que já são usuárias de um determinado serviço presencial poderão rejeitar a sua solução tecnológica. É, sobretudo, respeitar essas pessoas e entender que elas, como eu sempre digo, não são obrigadas a nada, nem mesmo a usar a solução de milhões de reais que você desenvolveu para, supostamente, tentar economizar outros milhões.
É, em última análise, respeitar que, do outro lado, há pessoas como Daniel Blake que precisam de suas pensões para sobreviver. O formulário digital ou de papel é só um meio burocrático para que ele tenha acesso ao benefício ou direito. Façamos da melhor maneira e pensemos com muita empatia em quem está do outro lado, antes de nos deslumbrarmos com a tecnologia, a suposta conveniência e economia que ela pode gerar.
Mas, claro, para além das soluções tecnológicas não podemos deixar de pensar e fazer uma discussão mais ampla e cara ao nosso triste momento político, marcado pela redução de direitos. Se ainda houver direitos, que, também, haja uma boa experiência do cidadão ao deles usufruir e ao acessá-los.
O apelo em uma das cenas cruciais do filme parece sintetizar muito bem toda a discussão que tentei fazer neste texto. O protagonista picha um muro com a seguinte frase: "Eu, Daniel Blake, exijo uma data para meu apelo antes que eu morra de fome — e troquem a música de merda no telefone”.
Se quiser ver um pouquinho do filme, aqui está o trailer:
E, caso você se anime, visite este link para saber onde o filme está disponível.