Música e Trabalho

Um amor em Caciporé

- Égua, por aí não! Gritou, desesperada, a mulher que, com as roupas em frangalhos, esbarrou em nós quando entrávamos na baiúca.

O grito, tão lancinante, confrangeu nossos corações e, assustados, nos viramos para o homem que, segundos antes, passara correndo por nós em carreira desatada, e a quem ela gritava. Quando dei por mim, gritos assomavam no descampado para o qual o homem se dirigira correndo: um grupo de homens o atacara munido de terçados, e em questão de segundos, despedaçara seu rosto ao ponto de deixar o homem desfigurado.

Com o coração enregelado, mantive os indígenas que estavam comigo dentro do estabelecimento, enquanto os gritos lancinantes da mulher ecoavam pela capoeira que circundava o descampado, reverberando na copa úmida das árvores e cortando o ar quente e denso do pós-chuva.

O ulular metálico dos tucanos imiscuía-se ao pranto da mulher que, sozinha, de joelhos, gritava aos céus com o homem no regaço. No estabelecimento de piso de terra batida, à beira da enlameada e repleta de atoleiros BR 156 daquele longo inverno em que naufragávamos em atoleiros por seis, sete horas, nos entreolhávamos desesperadamente calmos: estávamos implicados, não havia meio de fugir dali.

O gol do Flamengo, replicado na TV ligada, passara batido naqueles eternos 2 minutos ou duas horas que nos fizeram quedar dentro da baiúca na qual havíamos parado para usar os sanitários, com inscrições em português e francês.

Estávamos na Vila do Cassiporé, muito próximos do gigantesco garimpo do lourenço que, àquela época, estava em franca ascenção com a criação da Coogal, a cooperativa dos garimpeiros do Lourenço, um movimento dos próprios garimpeiros em prol da legalização da garimpagem na calha do Cassiporé e que atraíra um contingente considerável de garimpeiros interessados em assumir o controle do Lourenço.

Estávamos há dois dias na BR 156, rumo ao Oiapoque onde participaríamos, os indígenas Wajãpi que eu assessorava e eu, de um encontro transfronteiriço, no qual os Wajãpi do Brasil, que tive a honra de assessorar por sete anos, e da Guiana Francesa; os Tiriyó do Brasil e do Suriname, os Wayana e os Apalai do Brasil e do Suriname e da Guiana Francesa ,todos, iriam se encontrar para debater problemas e soluções enfrentados na gestão socioambiental de seus territórios – entre eles as constantes invasões por garimpeiros.

O silêncio que pairava dentro da baiúca era cortado apenas pela desagradável narração de Galvão Bueno: era domingo, e muitos homens bebiam no estabelecimento. Nós, grupo visado por motivos óbvios, entramos bem quando o homicídio se deu.

- Bota música aí, Luis, que garimpeiro é assim mesmo: se pega corda, fura mesmo. Todo mundo sabe disso - gritou, rompendo o silêncio taciturno, um homem que bebia sozinho sua Velho Barreiro com leite Moça a um canto. Na neblina tomava a copa das árvores em derredor, enquanto o céu de um magenta arroxeado propagava metalicamente o alarido das araras e o ulular dos tucanos.

O proprietário ligou a caixa amplificada e imediatamente a canção de Sidney Roberto, intitulada Um amor em Caciporé começou a tocar, numa coincidência prosaica e trágica:

Mais de uma hora de vôo
Bem no centro da floresta
À procura de trabalho
Pra viver uma vida honesta
Enfrentando perigo
Trocando a vida no ouro
Sem lenço
Sem documento
Sem o mapa do tesouro
Lá eu trabalhei um ano
Parecia uma eternidade
Mas o forte em meus planos
De ser alguém na cidade
Lá eu deixei meus amigos
A quem desejo boa sorte
E também uma pequena
Que não esqueço
Nem com a morte

(Refrão)
Eu vou voltar
No Lourenço do Cassiporé
Eu preciso rever meus amigos
E trazer aquela mulher

Estávamos em 2011, mas esta canção gravada em 1991 era, ainda (assim como hoje), um hino no Amapá. Ali, em Vila Velha do Cassiporé, BR 156, pleno Amapá, tão próximo do Lourenço, não poderia deixar de estar na playlist de qualquer baiúca.

Os homens que bebiam voltavam a conversar enquanto um grupo de mulheres consolava aquela que alertara o assassinado a não seguir para o descampado onde, há poucos minutos, fora varado a terçadada. Puxando-a com malemolência, as mulheres instavam para que ela deixasse ali o corpo e voltasse “para casa”.

Tesos, nos entreolhávamos enquanto saíamos do sanitário, um a um, sabendo que nada poderíamos fazer e muito menos falar a respeito, pois estávamos em pleno garimpo, indígenas que contra ele movimentaram inúmeros inquéritos e ações civis públicas via Ministério Público Federal. Fui ao balcão, ostentando tranquilidade, enquanto os homens retomavam o fio da conversa a nos olhar de lado e a bola branca voltou a abalroar as demais sobre o gasto outrora verde pretenso feltro da mesa de bilharito.

- Égua, não, Luis! Agora, mano! Isso sim! Aplaudia enfaticamente o homem que bebia só, quando o refrão de Sidney Roberto tomava o ambiente. Aplaudido pelos demais, o cantor versava sobre suas vidas: o que todos ali tinham em comum. E cantava, a libar a Velho Barreiro, conclamando cumplicidade da assistência:

À procura de trabalho
Pra viver uma vida honesta
Enfrentando perigo
Trocando a vida no ouro
Sem lenço
Sem documento
Sem o mapa do tesouro

Lacrimejando, enfatizara de maneira lancinante a palavra trabalho, ss frases vida honesta, enfrentando o perigo e sem mapa do tesouro, esforçando-se para molhar as palavras com seu vibrato dramaticamente desafinado e, assim, conter a emoção decorrente da inevitável identificação com a canção.

- Garimpeiro é assim. Amarga malária, se arrisca debaixo de barranco, abandona família, sofre na mão de rapariga, para uma coisa: dar no veio de ouro. Trabalha de sol a sol, tremendo de febre, acha um pouco, troca por nada, compra a quina, engole com cachaça, se afoga no peito das raparigas, e de manhã, lá está ele: trabalha, trabalha, trabalha. Égua, não, pensa num bicho que trabalha. O senhor sabe o que motiva o garimpeiro a levantar todo dia às quatro da manhã para se enfiar debaixo de barranco, ou andar no mato meses a fio só com sal e munição, uma bateia no jamaxi e malária nas veias? – Derrubou o resto da cinza do cigarro enrolado no papelinho com fumo Maratá com a unha imensa do mindinho torto, coçou ao lanho que lhe marcava o rosto da testa ao queixo, e respondeu, enfaticamente: “bamburrar, meu filho. Todo mundo quer só é uma coisa: bamburrar. O garimpeiro amarga fome e malária, briga, fura o outro, toma sol, toma chuva, é para uma coisa: bamburrar. Ele trabalha é para bamburrar”.

- Dar no veio, enriquecer, sair do garimpo - aquiesci.

- Mais do que isso, meu filho – completou, com o mindinho em riste: bamburrar é dar no veio e ficar rico, sim. O garimpeiro é o bicho que mais trabalha nesse mundo, meu filho: pergunta se os técnico da Funai anda no mato que nem eles? Eles anda até mais que os índio, o senhor sabe disso, pois não. O garimpeiro trabalha para bamburrar e bamburra: tem muitos, eu mesmo já bamburrei. Mas bamburrar é ganhar muito dinheiro, dar no veio, achar pepita, e gastar tudo. Não tem esse garimpeiro, meu filho, que já não tenha bamburrado, gastou tudo em duas noite, fretou carro, fechou cabaré, quitou dívida em baiúca, fez dívida em baiúca, pagou bebida foi pra todo mundo, e depois, de ressaca, tava juntando bateia, azougue, as ferramenta tudo de novo, calcando as galocha velha para se meter no mato de novo.

Seu Agenor me contara isso na Vila do Cupixi, BR 210, enquanto trocávamos os pneus da Hilux na qual eu voltava da Terra Indígena Wajãpi para Macapá, numa álgida noite de maio em que o açaí todo do Amapá paria grandes bamburros, o cupuaçu mais aromático do mundo apodrecia em freezers sem energia elétrica enquanto no Pão de Açúcar de Pinheiros madames pagavam alto por pálidas alusões ao sabor do cupu, num bamburro perdido, que ninguém valorizou.

Isso foi semanas antes de estarmos ali, na Vila Velha do Cassiporé, ouvindo Sidney Roberto narrar, com trágica ironia, a vida da vítima do homicídio que, trêmulos, ainda pairava em nossos espíritos.

- Ei, cunhado! Ei, cunhado! Tem cigarro, cunhado? Interpelou-nos o homem que bebia sozinho. K, um dos indígenas que estava comigo, respondeu que não tinha.

- Por quê? Índio não trabalha? Olha, nós aqui tudo trabalha, apesar de vocês falar que nós é vagabundo. Olhou a assistência que se quedava tensa, a fim de angariar aprovação: “Num tem esse garimpeiro que não levante às quatro da manhã para embrenhar no mato, passa dia debaixo de chuva na mata, trabalhando nos igarapé que vocês, preguiçoso, nem toca. Garimpeiro é trabalhador, e trabalhador é gente honesta” – aumentou o tom.

Ofereci-lhe minha carteira de cigarros, da qual retirou um. Não tinha isqueiro: acendi-lhe, à custas, o cigarro, pois a brisa úmida que anunciava a noite fria dificultava o devir da chama do isqueiro.

- Vocês, da Funai, eu conheço bem – apontou para mim, que sequer era da Funai, e prosseguiu: “Sempre índio garimparam. Pode perguntarem. Aí vocês que proíbe. Né, cunhado?”. Piscou para K, novamente, que respondeu com um sorriso.

- Índio trabalha também, cunhado. Caça bastante, pesca, faz roça - respondeu, simpático, J, esforçando-se por mitigar o previsível mal-estar.

Luis chamou a atenção de todos, providencialmente: “olha lá o carro do Serejo”. Todos se voltaram para contemplar a L200 que assomara ao descampado, da qual saíram três homens que, discutindo um pouco, abriram a tampa da caçamba e ali colocaram o corpo enlameado e ensanguentado.

- Viu, cunhado. Muda de assunto não: nós, garimpeiro, tudo nós trabalha. Trabalho no garimpo é duro, mas é honesto. É gente honesta aqui! Tem uns que passa dos limites, quando fica porre, mas isso aí tem no Oiapoque, no Kuhu, em Macapá. Aqui nós somos gente, e gente trabalhadora! - Subia o tom, derrubando Velho Barreiro com leite moça ao se levantar.

- Eu mesmo, trabalho mais que tudo aqui. Duvido um aqui passar mais tempo no igarapé que eu. Digue lá, Luis, quantos bamburro eu dei! - Continuou, em tom de desafio.

Luis, aquiescendo sutilmente a fim de implicar-se o menos possível, pegou o controle remoto do DVD player que reproduzia o CD “Amando em Itamaracá” de Sidney Roberto, e aumentou o volume.

A L 200 passou em frente à baiúca, e segundos depois, pessoas que souberam do homicídio recém perpetrado ingressaram no recinto, fuzilando os presentes com perguntas, pedindo cerveja, lotando o local.

Era nossa deixa. Nos despedimos do homem e dos presentes, paguei a Luis o que devíamos e retornamos, quietos e taciturnos, ao carro. Assim ficamos durante o resto da viagem, e as palavras de Seu Agenor não me saíam da cabeça: o garimpeiro é um soldado, que trabalha para o patrão, nas currutelas grandes como Lourenço, pois tudo o que ganhava com seu árduo, duro, brutal e brutalizante trabalho, era empenhado na própria currutela.

- Tairo, por quê garimpeiro assim? Perguntou-me J - rompendo o silêncio. E prosseguiu: Por quê garimpeiro não trabalha na roça? Eu vi garimpeiro primeira vez lá no Najaty, com meu pai e avô. Eles pediam: “Ei cunhado, tem banana cunhado?”. Meu pai e meu avô nem sabiam português, só repetiam “ei cunhado, tem banana?”. Garimpeiro ficou bravo, foi embora. Depois eles roubaram nossas bananas na roça. Destruiu tudo igarapé, tairo, ficou tudo, como diz, poça, poço; muita lama, muito carapanã: encheu de malária. Água ficou suja, os peixes morreram tudos, igual que nem quando a gente usa timbó para pescar. Por quê eles não trabalham para fazer roça, tairo? Anda bem no mato, por quê não caça, pesca, que nem Wajãpi?

Como explicar que, mais de uma hora de vôo ou semanas de caminhada na mata com carotes de 50 litros de gasolina presos na testa com envira testa à guisa de paneiro, meses a fio no mato, sozinho, longe da família, trabalhando à própria sorte, destruindo ecossistemas inteiros à cata de miligramas, ínfimas onças de ouro, matando onças para vender as peles (pois todo garimpeiro é, ainda, um gateiro), se devia ao fato de que, desprovido de terras e dos meios de produção, esse soldado labutava, alienando sua força de trabalho ou, melhor, seus batimentos cardíacos, sua energia vital, sua alma, seu engenho, seu suor, para entregar o produto deste trabalho a um atravessador que, em troca, lhe dará míseras porções de equivalente universal, com as quais esse soldado adquirirá, na própria currutela, amores e felicidades de aluguel, passageiras, como anódino para a dor que corpo e alma sentem por essa expropriação do que ele possui de mais sagrado: seu tempo, seus batimentos cardíacos, seu viver?

- Isso aí mito explica: suor de Adão, eu li – completou M. No curso de pesquisadores a gente leu esse mito de vocês karai kô. Trabalhar é igual prisão, nós lemos. Adão fio contra Criador, casou com mulher que não podia, aí tem que trabalhar para comer. Não tem nada, karai kõ; se não trabalha, não come. Se ficar na rede, não come: se não faz kasiri, não tem cerveja de mandioca. Mas a gente trabalha para sogro: garimpeiro trabalha, trabalha, trabalha, bebe, bebe, bebe, depois volta. Eu vi: assim falou garimpeiro quando meu avó passou urucum nele e entregou para Funai, na época da demarcação.

Passávamos pela ponte sobre o Cassiporé, o rio com os mais altos índices de contaminação por mercúrio, quando no som do carro, onde desde sempre só ouvimos brega (como bons amapaenses), em que tocava a coletânea do Puro Brega (que Raul e eu compramos na viagem anterior) em Serra do Navio, começou a tocar “Canção do garimpeiro”, de Sandro Lúcio:

Já faz muito tempo
Que deixei minha terra
La ficou minha família
Estou em terras estranhas
Entre serras e montanhas
Arriscando minha vida
Enfrentando o perigo
Meu trabalho é pesado
Não posso desanimar

(2 vezes)
À procura de um tesouro
Quando eu achar o ouro
Para casa eu iriei voltar

(Refrão)
Tenho fé em Deus
Que pra minha terra
Irei regressar
Vou rever minha família
Que está em casa
A me esperar

Quando pego na bateia
Sinto correr nas veias
O sangue de um garimpeiro
Peneirando o cascalho
Com fé em meu trabalho
Nesta luta o dia inteiro
Quando chega o fim da tarde
A tristeza me invade
E faz até chorar

É mais um dia de anseio
O meu ouro não veio
Amanhã hei de encontrar

(Refrão)
Tenho fé em Deus
Que pra minha terra
Irei regressar
Vou rever minha família
Que está em casa
A me esperar

Bamburro, o sonho do garimpeiro que deixa a família com rancho feito e dívida na baiúca, parece ser um ciclo sem fim: “o que é do garimpo, fica no garimpo”, comentou, certa vez, um dos meus cunhados num domingo em que, assando um tambaqui, comemorávamos seu retorno a Macapá depois de uma longa permanência nos garimpos da Guiana Frances.

- Sempre sonhando com o veio. O ouro tá aqui. Vai tá aqui. Hoje dou no veio. Égua, hoje eu bamburro. Tá lá! Tu diz? Mas quando, mano. Teve colega que achou. Alguns foram para outras paragens. Mas é comum todo mundo se encontrar. “Égua! Tu, aqui, homem? Não tinhas voltado?”. A mulher chifrou. Outro, a mulher deixou. Outro, a doença comeu todinho: dis´que sai do garimpo com uma maldição. Saiu, vai voltar, considerou.

Alienando seus batimentos cardíacos, seu tempo de vida, enfrentando matas, malárias, dias de chuva e pouca caça, arriscando-se a sofrer acidente ofídico, o garimpeiro independente que se embrenha na floresta à cata do ouro de aluvião tem a impressão mais franca de que trabalha para si mesmo quando, na verdade, deve tanto pela empreita que, vítima de uma complexa cadeia de atravessadores, acaba saindo de meses na mata com menos do que o que gastara ao entrar nela.

Poi, no geral, aglomerando-se em currutelas dominadas por patrões cruéis, contingentes de garimpeiros se amontoam nos centros, debaixo de lonas em jiraus, amargando fome a e malária, com fé em Deus, sonhando voltar para a terra em que deixaram a família, vislumbrando bamburrar.

Muitos amigos se arriscam, juntos, solidarizando-se, ao mesmo tempo em que, na ausência absoluta de poder regulador das relações para além da força, muitos homens tombam e são silenciosamente deitados sob a terra que estripam, sem que à suas terras natais e famílias regressem.

O brega de Sandro Lúcio nos emociona a todos. Imaginamos o homem recentemente morto de forma brutal caminhando pelas matas com a bateia presa ao jamaxi, guardando o precioso pó dourado num vidrinho, até que uma desavença, uma dívida, um conflito, geralmente provocados pelo trabalho, ocasionem a morte de um ou outro.

- O patrão nem não fica com o ouro: ele freta avião, paga os homem para fazer a pista de pouso, compra gasolina, gerador, mangueiro, munição; adianta o rancho dos homens. Depois, com o ouro que leva de avião, ele bamburra: rapariga e cachaça, compra caminhonete, fecha cabaré. Mês que vem está botando no 12 com os homem, para trabalhar mais, que o ouro não tá dando – complementa Seu Agenor.

A notícia do homicídio chegara antes de nós em Oiapoque e, na manhã seguinte, era só do que se falava. Aquiescíamos que sabíamos, e mudávamos de assunto para não nos implicarmos: “o que acontece no garimpo fica no garimpo”, dissera, certa vez, um carpinteiro naval que calafetava uma canoa no estaleiro do Sargento, em Macapá.

Na mesma noite em que chegamos à cidade, um homem em andrajos, certamente descendente indígena, nos interpelou pedindo trocados enquanto, calados, desfazíamos a complexa amarração da carga que levávamos para o Encontro a fim de alcançar nossas mochilas.

- Esse homem não tem casa, tairo? - Me perguntou J enquanto subíamos a escada do hotel.

- Não, tairo, não tem, por isso ele pediu dinheiro. Não tem casa, nem comida - respondi.

O pedinte mencionara que estava com erisipela devido ao esforço que empenhara no garimpo e que, por isso, não conseguia mais emprego.

- Como que ele pegou tanto ouro, tairo, a vida toda, e não tem nada para comer? - Me pergunta, curioso e desgostoso, o então jovem e curioso J.

- O que é do garimpo fica no garimpo, tairo - respondi.

No início, quando o lastro em ouro ainda evitava que a cadeia de valor que mortifica trabalhadores para, usurpando-lhes princípio vital, gerar miséria para produzir riqueza, e, produzindo miséria justificar o trabalho, que é a exploração estupradora do humano, o capitalismo o mais selvagem instalava postos avançados nos quais fazia escravos a que explorar e estabelecia fronteiras de recursos naturais a explorar: o capitalismo não passa de um grande bamburro, um circuito de exploração de pessoas e ambientes, recursos humanos e naturais, que visa engendrar riqueza para a riqueza em si, beneficiando enormemente os artífices do valor do produto, que sequer sabem a cor da lama, e muito menos conhecem o cheiro da pólvora e do sangue, quando a ela se imiscuem.

“Todo garimpeiro é um trabalhador e todo trabalhador é honesto”, defendia-se o homem que, testemunhando um homicídio, constatava que o morto não reveria os amigos, nem buscaria aquela mulher para viver consigo. Mas o trabalho é um valor que está para além do valor de troca e do valor de uso, e o “povo da mercadoria”, como bem define o sábio xamã Davi Kopenawa, persiste estripando a terra, contaminando-se com a fumaça do metal e suas febres e epidemias, cego ao fato de que, mexendo com os Donos da terra, da floresta, dos rios, dos animais, para gerar miséria e, somente assim, produzindo miséria, necessidade, fome, rarefação, constituir o trabalho como o ato de vilipendiar a floresta, convertendo-a em lama e doenças, deserto e areia, para obter o metal reluzente que sequer poderão possuir, embora seja fruto de seu trabalho.

Todo garimpeiro é um trabalhador e, por isso é honesto: o trabalho dignifica o homem, é condição sine qua non de sua honestidade, por mais que trabalhar implique em vilipendiar a terra, matar indígenas, contaminar tudo, viver em currutelas nas quais se aluga o trabalho alheio das profissionais dos amores vagos e se consome álcool até perder os sentidos e, só assim, aquietar a alma.

Trabalhador e, portanto, honesto, o garimpeiro é um homem explorado em sua mais absoluta condição e no mais absoluto grau que, como a terra que estripa, sai dessa experiência tão pobre e destruído como ela. Toda riqueza que o trabalho destes homens explorados e logo descartados produz escapa-lhes das mãos como a fina areia branca dos igarapés que, contaminando com mercúrio, turvam, pois o trabalho dignifica o homem, o que é do garimpo fica no garimpo (não pertence ao garimpeiro) e “nesta luta o dia inteiro/Quando chega o fim da tarde/A tristeza me invade/E faz até chorar/É mais um dia de anseio/O meu ouro não veio/Amanhã hei de encontrar”.

Se der sorte e der no veio, bamburra, segue a canção: ascensão e queda pelo trabalho, trabalho entendido enquanto exploração à exaustão dos recursos humanos e naturais; e então, tendo produzido miséria e destruição alienando-se de sua própria força de trabalho, o garimpeiro gerará riqueza cuja posse não lhe é facultado ter: e o que é do garimpo fica no garimpo.

Assim é o capitalismo, um eterno bamburro cujos subprodutos são florestas devastadas, homens desfigurados (pelo trabalho ou pelos trabalhadores), e um pó reluzente que o “povo da mercadoria”, como bem postula Davi Kopenawa em seu sublime A queda do céu, provoca febre, anuvia o entendimento e transforma homens em escravos.

O garimpo é, não a melhor metáfora possível do capitalismo, mas sim sua essência mais plena e pura, seu DNA desnudo de carenagens e vernizes: não à toa é de ouro, o valor e equivalente universal mais primordial e sempre lastro ontológico dessa máquina de moer gente que engendra miséria para criar necessidade de submissão ao trabalho, essa condição desumana, com a motivação ilusória do bamburro, que não é outra coisa que consumo: gasto, queima, uso, descarte.

Em meio à riqueza e à plenitude, mata-se rios e todos seus peixes para colher míseras onças de ouro que, uma vez trocadas, a preço de banana, mal se obter algumas bananas e comida enlatada industrializada: pois o trabalho dignifica o homem, e promove o progresso.


Bruno Walter Caporrino
Manaus, 19 de abril de 2020


Ficha técnica das canções:

Um amor em Caciporé
(Sidney Roberto/Jackson Luis/ Vivaldo Sena)
Intérprete: Sidney Roberto
LP “Amando em Itamaracá”, 1991
Catálogo LPU.2/0096
Gravadora: Unacam, Belém do Pará


Canção do Garimpeiro
(Sebastião de Assis/Manoel Novaes)
Intérprete: Sandro Lúcio
LP: “Paloma”, 1987
Gravadora: Continental, Araraquara