Por Robson Pereira Calça1
A tero apresenta a segunda indicação de música da série: “música e trabalho”. A cada mês, uma pessoa é convidada para indicar uma música e refletir sobre a relação dela com o mundo do trabalho. Na publicação anterior, a indicada foi “Cidadão”, interpretada por Zé Geraldo. Desta vez, convidamos o professor Robson Pereira Calça, da Universidade Federal Fluminense, que indicou o samba “Lenço no Pescoço”, de Wilson Batista. Trata-se de um dos maiores clássicos da música brasileira. Inspirado em Lenço no pescoço, Robson apresenta uma breve reflexão crítica sobre o significado concreto do trabalho na realidade brasileira. Para tanto, ele cita também o lendário grupo de rap nacional Facção Central. Trata-se, portanto, de mais uma importante contribuição para o tema da centralidade do trabalho no mundo capitalista, sobretudo no atual contexto de desemprego estrutural, que torna ainda mais difícil e dramático o acesso às “migalhas” a que se refere o nosso convidado Robson.
Samba, rap e o trabalho como acesso às migalhas
A noção de trabalho como valor moral, desde sua origem calvinista, é frequentemente tida como uma das bases da ideologia burguesa. Com maior ou menor influência do pensamento de Weber (e com maior ou menor fidelidade a ele), a ideia de que, na sociedade capitalista, o trabalho ganha contornos de nobreza e mérito é uma das mais disseminadas no imaginário coletivo.
Menos comum se faz, todavia, o refinamento da análise do estatuto que o trabalho ganha concretamente entre os trabalhadores. Contudo, encontramos exemplos deste estatuto na atitude crítica (em relação à ideologia do trabalho) presente em inúmeras letras do samba e do rap nacional – gêneros musicais oriundos da classe trabalhadora, nos quais o mundo do trabalho e a condição de vida do trabalhador não raro formam o cenário de suas letras.
Para além da negação satírica do trabalho, vinda de inúmeros sambas, que louvam a “vadiagem”, recusam a vida de trabalhador, abraçando a personagem do malandro, do boêmio, podemos identificar no próprio samba; e ainda muito mais no rap, o elemento de controle entranhado na identidade de trabalhador.
Dentro deste imaginário, o homem negro, o homem pobre, “ganha” (ou deveria ganhar), por exemplo, o direito de não ser esculachado em uma abordagem policial, pois ele “é trabalhador”. É preciso notar que esta migalha de cidadania só é conquistada através de uma relação de sujeição (ao trabalho alienado) anterior.
“O jogo é claro, sanguinário e objetivo, ou você é escravo de um patrão ou um número em um presídio”, diz uma letra do grupo de rap Facção Central (“Estrada da dor 666”, de 2003). Em outra letra, o grupo complementa: “pensei que com holerite e profissão não tinha troféu pela minha ossada no rabecão” (“Roleta Macabra, de 2006); referindo-se à abordagem policial violenta e letal. Ambas as rimas apontam para esta “armadilha do sistema”, que nem sempre é percebida.
A rebeldia do samba diante deste engodo, da falsa cidadania (e da real exploração) garantida pelo trabalho (na sociedade capitalista), dá-se de outro modo: através da contestação desta pseudocidadania trazida pelo trabalho; e da positivação dos estigmas criados por esta ideologia do trabalho – daí a louvação da “vadiagem”. Em 1933 Wilson Batista dá-nos um belo exemplar desta atitude crítica, já em um de seus primeiros sambas (Lenço no Pescoço):
“Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão”
Revelar a impostura presente na moral do trabalho não significa, entretanto, que este arremedo de direito, trazido pelo “ser trabalhador”, seja indiferente na vida dos excluídos. Pelo contrário, pode (no limite) significar a diferença entre a sanidade ou a depressão, a prisão ou a liberdade, a vida ou a morte, em um contexto em que este homem só tem o direito de existir se for para se sujeitar ao trabalho alienado. Além da própria premência da sobrevivência material, no seio social em que vigora esta ideologia (hegemônica), o trabalho torna-se condição de sobrevivência psíquica.
É no cerne desta problemática que o rap nacional opera. Sem deixar de ser crítico diante das armadilhas montadas pela subalternidade do trabalho destinado aos pobres brasileiros, tampouco deixa de reconhecer a sua importância para a sobrevivência (física e mental) deste homem (ainda que na sujeição e subalternidade); e de apontar para o perigo extremo de possíveis soluções individuais, oferecidas pelas atividades ilícitas de trabalho. Isto porque o “rapper” percebe muito bem que “a culpa é do sistema”, e não do excluído; que as condições sociais, neste ponto, são compulsórias. Percepção esta, decisiva para uma identificação profunda de tantos homens periféricos brasileiros com as rimas do rap nacional. Como diz Rappin Hood, na música “Vida Bandida” (de 2001):
“Não queria ser analfabeto
Queria ter estudo, colegial completo
Queria ter emprego
Uma ocupação (por que não?)
Vida bandida, culpa da situação”
Sobre as mulheres da classe trabalhadora pesa também a exigência do trabalho não remunerado, ainda menos valorizado. Tanto que esta exigência, de tão naturalizada, aparece muito menos em canções, geralmente composta por homens, como “Ensaboa”, que Cartola compusera em 1976. Se se pode dizer que, do mesmo modo, nos meios populares o homem é mais cobrado moralmente do que a mulher para “trabalhar fora”, isto não muda a realidade material que as impõe a dupla jornada.
Sobre as diferentes pressões sociais, derivadas da função social designada à mulher trabalhadora e ao seu companheiro, temos a letra, deveras cruel, de “Kid Cavaquinho” (de João Bosco, gravada em 1975), que ridiculariza um casal que teria estes papéis “invertidos”: “Genésio! A mulher do vizinho, sustenta aquele vagabundo”. A origem social do compositor nem sempre determina o teor de sua composição. Mas, neste caso, a de João Bosco coincide com o fato de seu samba ser um dos raros exemplos em que se reafirma a moral do trabalho (em um de seus aspectos mais perversos), em vez de contestá-la – como quase sempre fazem os sambas, as rimas, daqueles que são massacrados por esta ideologia.