Por Jefferson Belarmino de Freitas
Para muitos, o Capão Redondo, bairro localizado no lado sul do mapa de São Paulo, tornou-se mais conhecido pelas letras de Mano Brown, principal membro dos Racionais MC’s. Há, certamente, muitas outras figuras marcantes ligadas à esfera da arte que são originárias da mesma área. É definitivamente o caso de Redson Pozzi (1962-2011), ou, simplesmente, Redson. Oito anos mais velho que Brown, ele foi o mentor e o líder da clássica banda de punk rock nacional Cólera. Artistas, em vários sentidos tão distintos, eles demonstram a rica multiplicidade cultural que, apesar de todos os percalços, sempre floresceu na periferia de São Paulo.
Frutos do mesmo canto da cidade, Brown e Redson tinham influências e preocupações políticas que seguiam por caminhos distintos. Ao que tudo indica, uma interação entre os dois jamais aconteceu, e só pode, portanto, ser imaginada por aqueles que se interessam pelas trajetórias dos artistas. Formado dez anos depois do Cólera, os Racionais denunciavam os problemas dos jovens negros da periferia de São Paulo, indicando como esses jovens eram coagidos a lidar com o racismo cotidianamente. A eles restavam poucas possibilidades educacionais e de trabalho, por exemplo. Em sua rota ainda havia o contato frequente com a polícia, fato que, por sinal, poderia levar a um desfecho mortal. Sobretudo no início da carreira, os temas das músicas dos Racionais, bem como a estética sonora do grupo, dialogavam diretamente com a cena hip hop que crescia nos Estados Unidos no final da década de 1980. Naquele momento, alguns grupos de rap passavam a se tornar famosos no país da América do Norte, sendo que Mano Brown e companhia pareciam ter predileção pelo nova-iorquino Public Enemy, do imponente Chuck D.
Dez anos antes, no final da década de 1970, o Cólera tentava encontrar a sua assinatura musical lançando olhares para grupos de rock clássicos estrangeiros. Acabaram atrelando-a, a partir de algum momento, a bandas punks inglesas setentistas como UK Subs, Stiff Little Fingers, Buzzcocks, The Clash, dentre outras. A temática racial não aparecia no primeiro plano de preocupação do Cólera, nas entranhas da banda, como aconteceu mais tarde com os Racionais. É verdade que certa crítica antirracista sempre foi encampada pelo grupo. Ela fazia parte, contudo, de um discurso antifascista mais geral, bandeira presente na maioria dos segmentos punks nacionais.
Especulações sobre as implicações sociais ligadas à raça não são em vão quando pensamos na trajetória do Cólera. Redson e seu irmão Pierre, o baterista da banda, são visivelmente descendentes de negros. Curiosamente, o vocalista não explora abertamente os desdobramentos dessa origem em suas músicas. Talvez ele sequer se visse como negro. Deve contar para isso o fato de o movimento punk ser, de início, além de escancaradamente masculino, majoritariamente branco. As bandas estrangeiras que influenciavam os improvisados grupos nacionais no final da década de 1970 e no começo da década seguinte também seguiam a mesma tendência racial e de gênero. Sem contar que, no plano político, formulações mais circunscritas a essas duas categorias não atravessavam as preocupações dos grupos punks (musicais ou não), como parece acontecer com mais frequência hoje.
Dito tudo isso, temos o seguinte quadro: a partir do final da década de 1980, Brown alimentava-se de um diálogo político racial em conexão com o que captava das reivindicações dos negros estadunidenses; dez anos antes, Redson trilhava o seu caminho artístico enfatizando questões de classe, antenado, via música, com as condições sociais dos proletários estrangeiros (os ingleses, sobretudo). É notável como a palavra ‘subúrbio”, que nunca foi uma categoria nativa forte em São Paulo, aparece não somente nas letras do Cólera, mas também naquelas de muitos de seus contemporâneos. Como se sabe, mais tarde, o pessoal do rap adotava uma tática mais localizada: em vez do “subúrbio”, tomava a “periferia” como bandeira política.
Provavelmente, no caso do Cólera, a recorrente menção ao subúrbio seja mesmo derivada de uma tradução direta das influências musicais britânicas de Redson e de seus companheiros de banda. Mesmo com os dois pés fincados na periferia de São Paulo (ou, muito provavelmente, exatamente por conta disso), ele se dedicava a um discurso cosmopolita, construído, na prática, a partir de um encantamento com a Inglaterra e com o continente europeu em geral. Brown sentiu encantamento similar com o mundo negro dos Estados Unidos. Diferentemente de Redson, no entanto, o líder dos Racionais se amparava em um caso particular, o seu Capão Redondo velho de guerra. A partir de um tempo, essa estratégia passou a ganhar o respaldo de jovens negros periféricos, que se identificavam com as agruras que o rapper denunciava. O Capão fora deixado de lado pelas dinâmicas do chamado desenvolvimento econômico, mas Brown o colocava, com a habilidade crítica de um bom cronista, no mapa nacional. Com a ascensão de seu grupo musical, o Capão passou a não ser apenas um bairro do lado sul do mapa de São Paulo. Esse objetivo é, por sinal, corriqueiro na trajetória de diversos rappers de várias localidades do globo. É mais comum, é verdade, entre aqueles que querem denunciar uma realidade social que limita os seus anseios por uma vida melhor e mais digna.
A história do Cólera é bem menos conhecida que a história dos Racionais. Contrariando quase todas as expectativas (e estatísticas), o grupo de rap é, até hoje, um dos mais famosos do país. Entretanto, apesar das evidentes diferenças, Cólera e Racionais possuem pontos em comum, para além da origem ligada ao Capão Redondo. Existe, na história de um e de outro, um encadeamento de situações muito recorrente: jovens de diferentes cantos de São Paulo, desanimados com as parcas oportunidades do presente e com medo do que esperava por eles no futuro, criam laços no centro da cidade; a partir daí, resolvem formar um grupo musical para protestar contra as injustiças sociais que os cerceiam. No caso do Cólera, a conexão via centro com o pessoal da Vila Carolina, bairro localizado na zona norte de São Paulo, foi essencial para o nascimento da banda. Por lá, já se aglomeravam alguns punks insatisfeitos com as possibilidades sociais reservadas para os jovens, em um país que ainda caminhava aos trancos e barrancos para a abertura no campo da política institucional.
Redson era um verdadeiro agitador cultural. Quem assiste as suas entrevistas, logo percebe que ele apreciava mesmo se ver como tal. Estava envolvido em muitas das empreitadas culturais do início do movimento punk em São Paulo. Em 1982, o Cólera participou da coletânea Grito Suburbano, a primeira do país no gênero, na qual as bandas Inocentes e Olho Seco também debutaram. No mesmo ano, a banda foi uma das muitas que marcou presença no paradigmático festival “O Começo do Fim do Mundo”, que aconteceu no SESC Pompéia. As imagens desse evento são, até hoje, fonte obrigatória para os documentários sobre o movimento punk em seu primeiro (e, talvez, maior) momento de fervor. Em 1983, Redson inaugurou o selo Estúdios Vermelhos em referência à sua cor predileta. Ao contrário do que demonstra algumas de suas letras, ele fazia questão de dizer que essa sua predileção não tinha nada a ver com política. Esse também era, vale dizer, o nome do estúdio que criou de maneira totalmente improvisada em pleno Capão Redondo. Foi por meio de seu selo que Redson lançou a coletânea SUB, em 1983, hoje clássica e considerada uma raridade. Ela contou, além do Cólera, com as gravações pioneiras das bandas Ratos de Porão, Psykóze e Fogo Cruzado.
Na década de 1980, o Capão ainda tinha uma face pouco urbana, devido ao extremo descaso público. Essa característica decididamente não acrescentava muito ao cosmopolitismo que Redson nutria. O bairro era, ademais, profundamente marcado pelas violências que mais tarde Brown iria atacar frontalmente. Somado tudo isso, não é por acaso que, olhando para fora do bairro, Redson sempre recordou com muito orgulho de sua primeira turnê europeia, feita no esquema “faça você mesmo” em 1987.
O Cólera tem, até a presente data, nove álbuns de estúdio gravados e tantos outros registros ao vivo. O mais clássico deles é “Pela Paz em Todo Mundo”, lançado em 1986. O álbum contém 18 faixas de curta duração, e já esbarrava com o primeiro declínio do movimento punk, que enfrentava a perseguição policial e se esgarçara por conta das brigas entre diferentes segmentos – alguns dos quais gangues propriamente ditas. Foram muitos os militantes e músicos que abandonaram o movimento naquele momento. No plano musical, o álbum já dava mostras do que as bandas da época chamavam de crossover, que, em tradução livre, significa algo como ultrapassar barreiras ou limites. O termo em inglês designa nesse caso, simplesmente, ultrapassar a fórmula do punk rock por meio de uma fusão com o metal. Essa fusão foi levada mais a fundo por bandas como Ratos de Porão, esta tão longeva quanto o Cólera. Tal mescla de estilos não é escancarada em “Pela Paz”, que ainda se vale do minimalismo do punk: poucos acordes diretos, com letras de cunho político igualmente diretas, em meio a um ritmo geralmente acelerado.
Em Toda a Paz são abordados temas clássicos do movimento punk: a oposição às guerras, calcada em um forte discurso contra o autoritarismo e o militarismo; a crítica à fome e à pobreza; a defesa dos direitos humanos; o desalento dos jovens quanto ao futuro. O tema ecológico, um diferencial da banda, também se faz presente no álbum. Outro tema que se destaca em Toda Paz é o do trabalho, o mais central para este texto. Tal tema é o mote das faixas 2 e 4: “Funcionários” e “Alternar”. Esta última retrata, com doses de deboche, as dificuldades dos trabalhadores na década de 1980, utilizando-se, no pano de fundo, do comando “alternar”, presente nos treinamentos das Forças Armadas brasileiras. Os trabalhadores são obrigados não apenas a “vestir social”, são também obrigados a “agir social”; queiram ou não, têm, dia após dia, os seus corpos disciplinados para encarar o mundo do trabalho:
Desempregado, bolso vazio
Precisa comer, e quer trabalhar
Alternar! Alternar!
Você precisa trabalhar
Você precisa sobreviver
Mas te obrigam, te obrigam a vestir
Social, social
Mas te obrigam, te obrigam agir
Social, social
Gravata e sapato, cabelo lau lau
Sorriso amarelo, e roupa tergal
Alternar! Alternar!
Já a faixa “Funcionários” requer uma interpretação mais matizada. Ela é, certamente, uma das músicas clássicas do álbum igualmente clássico. Introduzida por uma linha de baixo marcante (meio taciturna até), a música apresenta, na primeira estrofe, um necessário (ainda mais pensando no que ocorre nos dias atuais) discurso contra levantes fascistas:
Toque um hino que rima
Com a hora, hora, hora
De gritar, de negar
Ao diabo os fascistas
Na segunda estrofe da música, Redson questiona não apenas quem está se apropriando da força de trabalho do funcionário que ele desenha; questiona, mais do que isso, o arranjo social que está tomando conta da própria alma desse funcionário. O que está em questão é um jogo de forças totalizante, que deixa poucas brechas ao trabalhador. Este é, ao fim, conclamado à mudança:
Para quem você trabalha?
Para quem você entrega?
Seu suor, sua alma
Temos que mudar, mudar
O refrão da música abre espaços para alguma polêmica, daquelas caras para a sociologia. Nele, Redson pede para que o funcionário “deixe sua cabeça funcionar”. Esta frase pode ser interpretada pelo menos de dois modos. Se quisermos ser mais coniventes, ela expressa a crítica de um jovem da periferia de São Paulo da década de 1980, que já via, naquele contexto, as condições degradantes do trabalho relegado às camadas populares. Se quisermos ser mais críticos, e essa é a questão mais polêmica, o autor da música presume que os funcionários, em geral, não conseguem ver, pelo menos na totalidade, as más condições trabalhistas que os acometem. Como música não é necessariamente um tratado sociológico, deixemos esse debate em aberto.
Redson morreu precocemente em 2011, pelo que consta, devido a complicações resultantes de uma úlcera. Desde então, a sua banda continua na ativa com outro vocalista, que foi seu pupilo. O mentor da banda não atingiu o mesmo sucesso da geração punk de Brasília, que também emergiu no final da década de 1970. Registros mostram que, bem longe de entender o que significava advir de lugares como o Capão Redondo, os punks da capital do país se vangloriavam por terem acesso aos LP’s importados, que os seus pais e/ou familiares traziam do exterior. Trata-se daquela “geração coca cola” que teve o verdadeiro privilégio de passar “vinte anos na escola”, e que mais tarde foi aceita pelo mercado fonográfico brasileiro anos antes da reviravolta desencadeada pelo advento da internet.
Inserido em outra realidade social, mas amparado por suas influências musicais, leituras e diálogos, Redson encontrou voz para se opor às injustiças sociais que mais o incomodavam. Uma dessas injustiças era derivada do próprio cotidiano de trabalho paulista, já precarizado nos idos de 1980, e o qual ele, da periferia de São Paulo, via indubitavelmente com cólera.