Elaine Aparecida de Sousa é afroempreededora. Militante da Marcha Mundial de Mulheres, membro da Amesol e coordenadora municipal da REAFRO São Paulo. Sua trajetória traz experiências de trabalho, voluntariado e muita luta. Uma oportunidade para refletir sobre a importância de políticas públicas, da formação e da organização social. Para falar de empreendedorismo é preciso, necessariamente, discutir classe, gênero e raça. Só assim é possível a construção de uma sociedade igualitária e de oportunidades, uma economia que se possa chamar de solidária.
Ancestralidade e Caminhos Percorridos. Elaine Aparecida de Souza, 46 anos, é moradora da zona leste, Vila Prudente, cidade de São Paulo. Em sua apresentação faz referência às mulheres ancestrais que a trouxeram ao mundo, Carmem (sua mãe, mulher forte, cozinheira, gente boa), Ana e Marta (suas avós materna e paterna). Essa referência é uma forma de lembrar suas origens, de reverenciar, mas principalmente de
"...saber de onde você veio e para saber para onde você vai".
Elaine é parte de uma grande fam;ilia com três irmãos, seis sobrinhos, avó paterna, primos, poucos amigos... e brinca: alguns inimigos "tem gente que não gosta de mim, mas quem gosta, gosta!". Atualmente mora com sua mãe e mais duas irmãs, "uma casa de mulheres", a mesma casa em que viveu, praticamente, desde que nasceu.
Uma vida de sacrifícios, mas sem tristezas. Com histórias similares às de muitas famílias, como pais separados, família numerosa, mãe que sustenta a casa com dois ou três empregos e cria os filhos, mas, de acordo com sua percepção, sem outras dificuldades enfrentadas por muitas famílias.
Elaine nos conta que cursou Direito, mas ressalta que sempre “teve o pé na cozinha”. Importante destacar esse processo de formação e suas expectativas de ação, bem como elucidar os caminhos percorridos, uma vez que, em dado momento de sua vida, teve que decidir qual caminho trilhar. Resultado: ficou com a cozinha, e acrescenta: “na vida costumo dizer que primeiro é preciso fazer o necessário e depois fazer o que gosta, que para mim é trabalhar com cozinha”.
Elaine comenta que não pensava em cursar faculdade, mas decidiu porque fazia parte de grupos de jovens negros e negras que começaram a cursar o ensino superior (ela mesma fazia parte da EDUCAFRO), e ela queria fazer parte desse processo, “não queria ficar para trás”. Quando começou a frequentar a faculdade brincava dizendo: “Não sei se serei uma doce advogada ou uma boleira justiceira”.
Cursar a faculdade, diz ela, foi uma experiência que “só me enriqueceu na vida, com conhecimentos que eu uso até hoje, faço meus contratos, dou dicas do que ainda sei, porque o direito muda muito...”. No início dizia que queria ser delegada, queria defender os pobres, defender as pessoas que viviam em situação difícil, mas após uma semana de estágio na delegacia já se sentiu desestimulada, uma vez que se deparou “com muitas injustiças”. Fez pós graduação em direito previdenciário. A essa altura já estava com 35 anos, desanimada com as possibilidades do Direito e trabalhando para se manter. Assim, decidiu parar um ano, mas não retornou aos estudos e nem tirou a carteira da OAB.
Ela se recorda que, aos 14 anos, via muitas pessoas de sua idade já trabalhando e decidiu trabalhar também. Arrumou seu primeiro emprego em um banco, como office girl e, no período da tarde, começou a cursar computação, que “naquele momento era uma novidade”, ressalta. Em pouco tempo deixou de fazer o trabalho na rua na parte da manhã, e passou a monitorar as alunas do curso de computação, trabalho que exerceu por cerca de dois ou três anos. Depois trabalhou mais oito anos em um escritório de contabilidade, sem direito às férias, aos sábados e domingos, trabalhando de madrugada, enfim, era tanto trabalho que pensou que “sairia de lá aposentada”. Entrou como digitadora e saiu de lá como auxiliar contábil – teve que aprender, reafirma.
Quando saiu do escritório ficou parada por dois meses e voltou a procurar trabalho quando acabou o dinheiro. Seu desejo era de nunca mais trabalhar com contabilidade, mas acabou trabalhando alguns anos depois em um outro escritório no centro da cidade por mais 4 anos, local em que “demorava mais para chegar ao trabalho e voltar” do que o tempo que trabalhava efetivamente. Eram “duas horas para ir e duas para voltar”, todos os dias. O desejo de não trabalhar mais com contabilidade era tão grande que passou a omitir no currículo a experiência.
O trabalho em uma agência de carros, próximo à sua residência, pelo período de dois anos, foi a oportunidade que apareceu quando saiu do escritório. Lá tinha a função de auxiliar administrativa e “mexia com toda a papelada, pagamento dos funcionários...”. Foi nessa época que cursou sua faculdade e começou a procurar estágio na área do Direito, muito embora quisesse continuar trabalhando onde estava, especialmente porque era ao lado de sua casa. No entanto, o estágio era obrigatório, e surgiu a oportunidade de estagiar no Museu Catavento, com possibilidade para efetivação, o que de fato se concretizou. Foram quatro anos de trabalho e só foi demitida porque mudou a gestão, que trocou a equipe toda. Essa demissão foi a “deixa” para que Elaine colocasse em prática o que chamou de “plano B”, ou “fazer o que eu queria fazer”: trabalhar com culinária.
Elaine nos conta que mesmo com emprego formalizado e estágio, sempre vendeu chocolates, pães e pagou uma parte da faculdade com essas vendas (uma vez que tinha bolsa de 50%): “o que estava dando dinheiro no ramo de alimentação eu fazia”. Preparava-se fazendo cursos de culinária aos finais de semana, à noite, até que, após seis meses parada e sem dinheiro, decidiu que era o momento de “ganhar dinheiro”. Começou anunciando no jornal que fazia bolo e docinho, e alguns clientes foram aparecendo, e isso permitia que, ao menos, ela conseguisse pagar o anúncio do jornal na semana seguinte.
Da iniciativa individual à economia solidária e as políticas públicas. No processo de vendas foi conhecendo pessoas, movimentos, e foi convidada para participar de uma feira que aconteceria no Butantã. Elaine se recorda que, nesse momento, “era a época das marmitas”, tipo de produto em que ela estava investindo sua energia. Após um período vendendo bolos e doces, começou a fazer também empadões, pães e foram esses os produtos que ela levou para vender na feira. Por ocasião do evento, participou de uma roda de conversa que explicava o que era “economia solidária” e gostou muito do que ouvira.
Em certa ocasião foi convidada por uma moça para uma segunda reunião, mas em vez de um pequeno grupo espantou-se ao adentrar uma sala com cerca de 200 pessoas, em que um “rapaz explicava que a prefeitura abriu uma frente de trabalho voltada para economia solidária: ia ter projeto de costura, saúde mental, catadores, agricultura familiar e o segmento da alimentação, eram cerca de sete ou oito segmentos”. Sentia que estava um pouco deslocada e que as pessoas convidadas tinham uma estrutura melhor, eram pequenos empreendedores, que tinham conhecimento de organização de grandes eventos, coffee break, buffet, enquanto ela “era vendedora de bolos em casa”. Entrou na reunião pensando que participaria de uma próxima feira, e à princípio não compreendeu bem as razões de estar lá.
A organizadora da reunião, no entanto, insistiu para que ela ficasse no projeto que a prefeitura estava implementando. E de fato Elaine entende que valeu muito a pena, aprendeu muito, ampliou a rede de conhecimento e relações. Aos poucos migrava de uma venda individual de bolo e doces, com ganhos baixos, para uma estrutura coletiva com apoio da prefeitura e outras organizações, como o Consulado da Mulher. Ela descreve os dois anos em que participou do projeto como de grande aprendizado sobre economia solidária. Simultaneamente continuou a participar das feiras com as mulheres do Butantã e do espaço implementado pela prefeitura no Cambuci. Ela lamenta o fim do projeto, uma vez que no último ano já estavam se formalizando como cooperativa, no processo de retirada do CNPJ.
Elaine se recorda que foi uma grande oportunidade, pois empresas entravam em contato para contratar coffee breaks, almoços, eventos, kits de lanches, etc. Faculdades e instituições de ensino, por sua vez, estabeleciam parcerias, muitas vezes direto com as próprias mulheres, para ajudar na criação de logos, de artes, e compartilhar conhecimentos, cursos, atividades, oficinas para a economia solidária.
Sobre a feira do Butantã, ela ressalta que a experiência era “mais profunda do que fazer uma feira”, era uma discussão sobre a vida da mulher, cuidado, saúde, direitos, feminismo, bem como debates sobre as razões do protagonismo da mulher na feira:
“Acabei me encontrando, era feminista sem saber!”
Aos poucos Elaine ia sentindo que ali era um espaço de fala, mas que as “suas irmãs não estavam ali, e que as mulheres negras não são contempladas no feminismo. Eu trazia a angústia de fora e daqui [das reuniões da feira] levava o que aprendia, sabia que a nossa posição não era a mesma”.
Infelizmente, com a mudança de governo da prefeitura de São Paulo, em 2016, o espaço no Cambuci foi fechado, uma cozinha moderna e equipada, várias máquinas de costura, “um pecado (...) ficou todo mundo a ver navios, porque os contratos eram da prefeitura, tinha muito café, almoços, sempre tinha trabalho, o dinheiro era bem distribuído, quando acabou era cada um por si, tive que recomeçar, caçar clientes de novo, me virar”.
Da estrutura organizada ao virar-se sozinha. O recomeço é difícil, mas não se parte do zero. No bojo do processo de construção implementado por políticas públicas na cooperativa de alimentação, Elaine aprendeu muito. Formalizou-se (MEI). Sua empresa “Batuque na Cozinha” faz coffee break, lanches, almoços (neste caso, quem cozinha para grande quantidade de pessoas é sua mãe, que é profissional).
A mãe é cozinheira. Elaine se recorda de que a cozinha sempre foi um espaço em sua casa de reunião das pessoas, especialmente aos domingos. Durante a semana a sua mãe trabalhava nas “casas das famílias”, e, aos finais de semana, enquanto limpava sua própria casa, preparava uma refeição diferente para os filhos. Aos domingos, todos passavam o dia todo beliscando, conversando, cozinhando. Certo final de semana, enquanto cozinhavam, tocou a música “batuque na cozinha”, do Martinho da Vila, e foi daí que surgiu o nome da sua empresa.
“Batuque na cozinhaConsidera um ramo difícil, porque a forma de adentrar na rede é por indicação, fazer um bom trabalho e ir “galgando degraus”. Sem dúvida, a experiência na cooperativa ajudou muito, pois vislumbrava uma oportunidade de desenvolver seu trabalho junto às empresas, com eventos para grande número de pessoas, inaugurações, almoços executivos, e outras possibilidades: “o trabalhou deslanchou quando consegui entrar no espaço do Bradesco [que cedia seu espaço para que elas pudessem oferecer os serviços de alimentação para os eventos]”.
Sinhá não quer
blockquoteor causa do batuque
Eu queimei meu pé
Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei meu pé
Não moro em casa de cômodo
Não é por ter medo não
Na cozinha muita gente sempre dá em alteração
Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei meu pé (...)”
Compositor: João Da Baiana
Com a pandemia os eventos e feiras acabaram. Na verdade, Elaine comenta que já tinha se afastado um pouco antes da pandemia das feiras, aos finais de semana, porque estava fazendo o curso PLP- Promotoras Legais Populares (para ajudar mulheres em situação de violência), mas continuava frequentando as reuniões de economia solidária e divulgando os eventos.
Também foi convidada para fazer parte de um evento do grupo “Invista como uma Garota”, grupo criado em julho de 2018 com o objetivo de aproximar “mulheres de temas como dinheiro e investimento”. Na ocasião, a atividade foi realizada no espaço Itaú e, apesar de muito boa, Elaine observou que não se sentia representada naquele espaço nem como mulher pobre, nem como mulher negra. Sentiu-se encorajada e foi falar com uma das palestrantes alertando para o fato de “que seria fácil de falar de investimento” para mulheres que já tinham uma condição econômica muito diferente da sua.
Com a pandemia, sem as feiras e eventos, voltou a fazer comida para fora, ovos de páscoa, e tentar novamente refazer sua rede de clientes. A Amesol (Associação de Mulheres da Economia Solidária de São Paulo) conseguiu dar um auxílio financeiro para as mulheres por dois meses, e mais uma cesta básica, iniciativa que permitiu a ela que conseguisse pagar suas contas e que não faltasse alimento. Ainda assim, nem todas as contas eram quitadas: “vou sorteando as contas que consigo pagar no mês e levando dessa maneira, meu padrão de grana caiu bastante”.
Economia, Formação e a Questão Racial. A entrada na Amesol foi fundamental e não se tratava apenas de um espaço de feira (imprescindível para a sobrevivência de muitas mulheres), mas de formação coletiva. Tanto que, mesmo quando não conseguia ir à feira, continuou a fazer parte das formações.
Elaine se sente acolhida pela Amesol e ressalta a importância de o feminismo comportar a luta das mulheres negras. Sente que precisa estar em todos os espaços e que “pertence aos dois lugares”, mesmo aqueles em que as mulheres “não sentem pertencimento”. Elaine ressalta que é preciso somar a luta das mulheres com a luta das mulheres negras, que estão em casa, exaustas de tanto trabalhar, de labutar o dia todo dentro e fora de casa: “com quem vai ficar o filho para a mulher negra ir marchar?”.
Elaine destaca que é “fácil apontar o dedo para a mulher negra dizendo que ela não pode participar, mas elas estão comprometidas com a sobrevivência e o cuidado de toda uma família que depende dela”. É preciso compreender as diferentes realidades para avançar nas propostas e discussões, além de dialogar, aprender, “levar e trazer minha visão”. Ela ressalta que a Amesol luta por todas as mulheres, sem distinção, mas ela pauta a luta da mulher negra o tempo todo, “estar lá e do lado de cá, junto com as mulheres negras”. Elaine também faz parte da REAFRO, um grupo de afroempreendedorismo, e destaca que isso difere do empreendedorismo, porque “as pessoas negras empreendem para sobreviver”.
“A Reafro é uma rede nacional criada em dezembro de 2015, para fomentar e estimular a atividade empresarial de afro-brasileiros. Estimula e apoia o afroempreendedorismo brasileiro e incentiva as relações de negócios com estratégias focadas na conquista de mercado e na redução das desigualdades raciais decorrentes do racismo estrutural”.
Para falar de feminismo é preciso desmistificar uma série de preconceitos. Ser feminista, para Elaine, é querer a equidade social, “nem ser mais e nem ser menos, ter direito (...) uma dar a mão e puxar a outra, para subirmos juntas!”. Em sua própria definição Elaine, acabou se tornando uma boleira justiceira.