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Trabalho e resistência: uma conversa com Paulo Lima, dos Entregadores Antifascistas

Nossa entrevista de setembro é com Paulo “Galo” Lima, liderança do movimento dos Entregadores Antifascistas. A conversa traz reflexões que estão em sintonia com as preocupações do instituto tero no que se refere ao mundo do trabalho. Galo fala sobre a trajetória até se tornar entregador, a precarização do serviço oferecido pelos apps, as dificuldades de organização dos trabalhadores, o mito do empreendedorismo, assim como reflete sobre o momento atual e os desafios impostos pela pandemia de coronavírus.

Gostaríamos de saber um pouco sobre você e sua história na cidade. Poderia nos contar um pouco sobre a sua trajetória até aqui?

Nasci e cresci na periferia de São Paulo, na região do Butantã. Aprendi sobre política dentro do movimento Hip Hop. Foi lá em que cresci e evolui. Em 2012, arranjei o meu primeiro trabalho registrado como motoboy – até aquele ano tinha trabalhado apenas fazendo bicos. De 2012 a 2015, sofri alguns acidentes que quase custaram a minha vida. Então decidi que não era bacana arriscar a minha vida para encher o bolso de ninguém. Fui atrás de outros trabalhos informais até que chegou 2019 quando tive que ir atrás de uma moto para poder trabalhar, porque eu precisava sustentar a minha família – em 2017, fui mandado embora de um lugar em que trabalhava como técnico de Telecom, em que instalava internet corporativa no interior de São Paulo. Acabei me desesperando e corri atrás de uma moto para poder trabalhar. Fiz uma dívida para isso e o mercado já estava sendo dominado pelos aplicativos. Os empregos de carteira assinada estavam escassos e tive que agir rápido porque a dívida poderia aumentar e as coisas ficariam ainda mais complicadas. Fiz o cadastro em um app e comecei a trabalhar, mas sofri uma série de abusos, como bloqueios injustos, dívidas e corridas absurdas no decorrer do tempo. No dia 21 de março de 2020, no meu aniversário durante a pandemia, a Uber me bloqueou mais uma vez. Foi quando decidi que dessa vez não iria chorar para ninguém e que iria fazer uma denúncia.

A renda da família vem exclusivamente das entregas ou você e outros trabalhadores conciliam com outras formas de trabalho?

Existem alguns trabalhadores que conciliam a jornada: eles têm emprego pela manhã e ligam o aplicativo pela noite. Isso existe, mas a minha realidade e a de muitos não é essa. A gente precisa dos aplicativos integralmente para viver.

Qual é a rotina dos entregadores?

Trabalho há um ano com aplicativos. Posso dizer por mim… a minha rotina era a de trabalhar 12 horas por dia e fazer, em média, R$ 100 ou R$ 120 por dia. Desses R$ 120, eu precisava tirar todas as minhas despesas, como a prestação da moto, seguro, plano de internet, gasolina, alimentação, pneu que fura, corrente que estoura e outros problemas que acontecem.

O que significa esse trabalho para você hoje?

Significa um modo avançado de exploração. Um jeito muito evoluído, muito sofisticado de explorar o trabalhador.

Há algum aspecto positivo neste trabalho, comparado com outras possibilidades de trabalho informal? Foi uma escolha dentro de um cenário de possibilidades de trabalho informal? Foi a única possibilidade? Considera um trabalho temporário, permanente?

Acho que ninguém considera um trabalho permanente, mas um trabalho temporário. Porém, você fica cada vez mais preso dentro dele. Você tem essa ilusão de que vai passar por ali e sair. Só que você tem dívidas. Consegui uma moto que a prestação custa R$ 700 por mês e preciso pagar em três anos. Enquanto não pagar, não consigo sair do aplicativo. Isso é louco. Você vê como algo que vai fazer por um tempo até conseguir um trabalho registrado que te garanta direitos, mas acaba ficando preso ali dentro por causa das dívidas que assume para trabalhar com aquilo.

Você teve outras experiências de trabalho? Pode contar quais e o que tinha de bom e ruim em algumas destas experiências comparando com o trabalho por aplicativos?

Tive várias experiências no mercado de trabalho, tanto formal quanto informal. Não vou dizer que a CLT pode ser considerava uma maravilha, porque ela ainda precisa melhorar muito. Porém, na CLT, você consegue planejar a sua vida por causa dessa garantia que ela traz. Se você for mandado embora, vai receber o fundo de garantia, o seu seguro desemprego. Isso dá tempo para respirar e ir atrás de outra coisa. E aí você consegue se planejar junto à sua família. Conseguir um apartamento parcelado para ter a sua casa e construir a sua vida. Se não tem essa garantia, você não sabe como vai ser amanhã se for bloqueado. Como é que você vai fazer se assumir dívidas? A gente está num sistema capitalista e depende de fazer dívidas para conseguir as coisas. Nenhum trabalhador vai conseguir comprar uma casa juntando dinheiro. Por mais que junte seu dinheiro, quando conseguir comprar a casa, ele já está perto de morrer. Então ele assume uma dívida para ter uma casa. Não é nem uma casa, na realidade. É uma dívida. Você precisa de um pouco de segurança e a carteira de trabalho te oferece essa segurança que o mercado informal não oferece.

Você já tinha participado de sindicatos ou outras formas de organização de trabalhadores, movimentos sociais?

Já tive contato com sindicato, mas nunca fui filiado a um sindicato. Tenho muito respeito pelos sindicatos. Tenho respeito pela política sindical, institucional, social. Sou um político de rua e acredito que todas as políticas que querem empoderar o trabalhador tem que se unir para que isso aconteça. É nisso que eu acredito.

A greve [primeiro breque dos apps que ocorreu em 1º de julho] é um movimento a parte dos Entregadores Antifascistas. A greve não tem um posicionamento político, não é a favor e nem contra o governo.

Nós Entregadores Antifascistas somos um movimento de esquerda e contra o governo. Somos trabalhadores, não nos entendemos como empreendedores. Acreditamos que a política é uma ferramenta de transformação e que os trabalhadores precisam se apoderar dela para poder utilizá-la a seu favor. Quando digo política, não é institucional, sindical ou política partidária. É a política de rua. O que a gente está fazendo é política. Essa entrevista é política. Então existem várias formas de fazer política. Com todo respeito a todas as formas que existem no mundo. Nós somos políticos de rua.

Sabe se houve algum tipo de represália por parte das empresas de aplicativo aos entregadores que participaram dos últimos atos?

Fui bloqueado oficialmente pela Uber e não teve nada a ver com as manifestações. Isso aconteceu porque o pneu da minha moto furou e não pude dar sequência no pedido. Na Rappi e no IFood, fui bloqueado de maneira branca, ou seja, não é um bloqueio oficial. Você fica online, mas não recebe mais os pedidos. É um castigo que ocorre por um período. Hoje, a minha vida tem me levado a uma série de coisas que ainda não tive tempo de dar conta. Assim, não sei se já fui desbloqueado do aplicativo. Hoje, vivo do auxílio emergencial e de alguns trabalhos que aparecem por fora dos aplicativos. Por enquanto, não tive que recorrer aos aplicativos novamente, mas acredito que logo precise fazer isso.

Quais as dificuldades encontradas pelos trabalhadores hoje para organizarem-se? O movimento tem se ampliado?

A maior dificuldade é não ter um ponto de apoio onde a gente consiga se unir. Eles se enxergarem como trabalhadores já seria um ponto de apoio. “Nós trabalhadores precisamos nos unir para mudar essa condição. Isso ocorre de tal e tal modo. Como sempre operou”.

Existe o microempreendedor individual (MEI). Então as pessoas se enxergam como indivíduos, cada um no seu quadrado, cada um cuidando de sua vida e ninguém preocupado com o coletivo. Acho que esse que era o plano deles: dividir a gente.

Existe o microempreendedor individual (MEI). Então as pessoas se enxergam como indivíduos, cada um no seu quadrado, cada um cuidando de sua vida e ninguém preocupado com o coletivo. Acho que esse que era o plano deles: dividir a gente.

O roubo de motos em São Paulo é um fenômeno. Tem motoboy que já perdeu três motos e teve que comprar uma nova para poder trabalhar. Então muitos acreditaram nessa coisa de que a esquerda acabou com o Brasil, de que os ricos estão certos. Eles acabaram levando a consciência dos companheiros dessa forma, reproduzindo esse discurso de repressão policial, de arma na mão do povo, de que a esquerda destruiu o país. E a esquerda serve para defender o trabalhador. O pessoal me pergunta o que é esquerda e direita. Eu falo que a esquerda é para defender o trabalhador e a direita para defender o patrão. Lógico que existem pessoas ruins nos dois lados. Não é porque você é de esquerda que é perfeito. Não é isso. Existem, sim, pessoas mal intencionadas na esquerda também. Porém, o que temos do lado dos trabalhadores é a esquerda. Precisamos recuperar essa consciência porque ela foi destruída de forma proposital.

O que vocês acham importante e esperam conquistar com a organização? Pensam em ampliar essas pautas no futuro?

Nós pensamos em conquistar o vínculo empregatício no futuro. A partir disso, quando a gente recuperar nossa carteira de trabalho, a gente quer lutar para melhorá-la. Porque a carteira de trabalho também não está boa, mas não é porque ela não é a ideal que a gente vai jogá-la no lixo. Ela é nossa, a gente vai atrás dela para recuperá-la e protegê-la.

Queremos ampliar a pauta. Assim que a gente conseguir atingir algumas metas, a pauta será ampliada. A meta? A gente quer que os aplicativos garantam café da manhã, almoço, jantar, lanche da tarde ou da madrugada, para os entregadores que trabalham nesse período. A partir disso, a gente vai ampliando o horizonte.

A sua experiência de vida e de trabalho se aproxima, assemelha ou se distancia da experiência de outros trabalhadores? O que acha que há de diferente ou similar na sua trajetória e de outros trabalhadores?

Somos iguais, somos parecidos. Na pele, no corpo, na carne, no jeito de olhar. No jeito de pensar, não. A gente pensa diferente e o ideal é que as coisas sejam assim. Inclusive os Entregadores Antifascistas, nós não pensamos igual… pensamos diferente. Nós temos vontade de empoderar o trabalhador. Todos nos enxergamos como trabalhadores, como força de trabalho. Isso é um consenso, porém temos formas diferentes de pensar. Acho isso muito bacana. Para a evolução do ser isso é magnífico. Não tem problema nenhum pensar diferente. Nós somos iguais, temos um sofrimento em comum, passamos pelas mesmas dificuldades, mas cada um tem sua trajetória. É questão da vida.

Há diferenças antes e depois da pandemia? Formas de remuneração, número de pedidos, jornada de trabalho, punições…

Depois da pandemia, os aplicativos triplicaram o número de entregadores nas ruas. Então caíram os números de pedidos para os entregadores, porque a concorrência era muito maior. Dessa forma, a gente precisa trabalhar mais para ganhar menos. Essa é a diferença na pandemia. Mas as coisas já estavam ruins antes da pandemia. É como eu digo: já havia um pandemônio. A pandemia veio para intensificar o pandemônio.

Qual a mensagem de luta que o movimento dos Entregadores Antifascistas gostaria de deixar para esse momento que estamos vivendo? Existe algo que nós, enquanto consumidores e usuários desses aplicativos, podemos fazer para apoiar os trabalhadores em sua luta e amenizar sua precária condição de trabalho?

Se existe algo que as pessoas podem fazer é entender que a uberização vai avançar por toda a classe trabalhadora. Isso não é um problema só nosso. A gente precisa lutar para regrar os serviços por aplicativos. Não deixar que a uberização ocorrer de forma irresponsável da mesma forma que a revolução industrial ocorreu. Buscar unir a classe trabalhadora. Esse é o objetivo maior.