Literatura e Trabalho

Literatura e Trabalho

Neste mês de setembro, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando a figura do aristocrata, na literatura portuguesa do século XIX, a partir da obra de Eça de Queirós.

A coluna, como sabemos, é sobre a representação do trabalho na literatura. Mas não podemos nos esquecer de que, historicamente, o trabalho nem sempre foi um valor, tal qual a sociedade burguesa o erigiu. Como foi possível discutir outrora neste espaço, o trabalho já foi, por exemplo, algo a ser feito por um outro – em geral, por alguém escravizado. Todavia, houve um momento em que a classe ociosa e rentista por excelência, a aristocracia, teve que se adequar aos novos tempos. Nesse sentido, há pelo menos três romances de Eça de Queirós em que a figura do aristocrata está no centro da narrativa. São eles Os Maias (1888); A Ilustre Casa de Ramires (1900); e A Cidade e as Serras (1901). No entanto, trata-se, nos três casos, de aristocratas que vivem num contexto de ascensão burguesa e que, diante da nova ética do trabalho, veem-se na obrigação de abandonar o ócio característico de sua classe – mas falham miseravelmente.

Em Os Maias, por exemplo, Carlos Eduardo é o menino criado pelo avô, após a morte do pai e a fuga da mãe, num sistema educacional supostamente inovador, baseado na escola inglesa. O resultado disso é o varão optar pelo curso de Medicina em Coimbra, quando o usual, para alguém de sua classe, seria o caminho do Direito (a Medicina era vista como coisa de carniceiro). Após a formatura e uma viagem pela Europa, Carlos Eduardo se estabelece em Lisboa, no Ramalhete – palacete da família fechado por vinte anos (desde que Pedro da Maia suicidara ali) e ricamente reformado por um arquiteto inglês para que Carlos tenha uma casa à sua altura na capital do país.

Os planos de Carlos Eduardo, dentro de seu círculo de amigos, são ambiciosos. Deseja se tornar uma glória nacional, fundando um jornal político e literário, além de se estabelecer como médico em consultório próprio – afinal, ele seria o primeiro nobre de sua estirpe a ganhar dinheiro com o suor do próprio rosto. As coisas começam a sair dos eixos quando o consultório de Carlos se torna, na verdade, uma espécie de garçonnière, em que ele recebe mais amantes do que pacientes. Ali estão presentes todos os traços de sua classe: além das amantes, o luxo, o piano e, acima de tudo, o ócio diante de um laboratório completamente abandonado. Os artigos não são escritos e o jornal jamais será impresso.

A vida de Carlos é toda ela tomada pelos compromissos de sociedade: as corridas de cavalos, as tertúlias nos salões, os saraus, os passeios à Sintra, os jantares no Hotel Central, os bailes à fantasia, as temporadas de verão no campo, etc. Para o aristocrata, que vive de suas rendas, a vida é composta por uma sobreposição de ociosidades a serem ocupadas em companhia de um outro seu igual. A maior de todas essas ocupações seria o enlevo entre Carlos e Maria Eduarda. As consequências trágicas dessa união já são mais do que conhecidas, com Maria Eduarda abandonando Lisboa e Carlos indo viver em Paris. Ainda assim, mesmo passados dez anos desde esse desfecho, o retorno de Carlos a Lisboa, num passeio com seu inseparável amigo, João da Ega, revela que, como eles mesmos concordam, ambos “falharam a vida”. Nenhum deles se tornou uma glória nacional. Nenhum deles jamais trabalhou ou edificou algo pelo seu país.

Já em A Ilustre Casa de Ramires reina a figura de Gonçalo Mendes Ramires, fidalgo da Torre, último varão de uma família que já tinha sua Quinta para os lados de Santa Irineia antes mesmo de existirem reis em Portugal. Gonçalo, formado em Direito pela Universidade de Coimbra, com um R (de Reprovado) em Literatura, planeja, do alto de sua Torre, escrever, em seus momentos de ociosidade, uma novela histórica em que narra os grandes feitos de seus antepassados – mais precisamente, de apenas um deles, por economia e por preguiça. De qualquer forma, seu projeto é menos literário que político, uma vez que, com o desenrolar das ações, percebe na publicação da novela uma forma de estrear bem na sociedade e, consequentemente, apresentar-se como candidato a deputado e de poder, eventualmente, trabalhar pelo país. A trajetória da Torre de Gonçalo até a cadeira de deputado na corte é longa e vamos nos furtar de descrevê-la aqui, pois o que nos interessa, nesse caso, é o fato de Gonçalo passar pouquíssimos meses exercendo sua função política, em Lisboa, para logo se lançar numa aventura ultramarina, investindo seus esforços num prazo (propriedade rural) africano. O fidalgo abandona seu trabalho em Lisboa, imagina o leitor, para trabalhar em África. Não é exatamente o que ocorre. Em seu prazo quem trabalha, de fato, são os escravos da terra. Gonçalo, como bem se vê, faz de tudo para experimentar o trabalho e muito mais para fugir dele. Isso sem mencionar o total desprezo que ele demonstra pelo trabalho alheio no episódio grotesco do trato desfeito com o Casco, na ocasião do arrendamento de suas terras.

Por fim, mas não menos importante, temos A Cidade e as Serras, em que figura, absoluto, o fidalgo Jacinto, no número 202 da Champs-Élysées, em Paris. Embora de família portuguesa, Jacinto vive exilado na França, desfrutando ali de toda civilização que o dinheiro proveniente de suas propriedades lusitanas possa lhe oferecer. À semelhança de Carlos Eduardo, Jacinto também é um homem de sociedade, com a agenda tomada de compromissos – desde que nenhum deles, sejamos claros, implique qualquer tipo de trabalho. Por conta de um deslizamento de terras em uma de suas propriedades, todavia, Jacinto se vê às voltas com assuntos de família vindos de Portugal, uma vez que o deslizamento destroçou uma capela e, junto com ela, os ossos enterrados de seus antepassados. O tédio e o cansaço daquela vida parisiense tomada pelos compromissos de sociedade levam Jacinto a se decidir pela ida a Tormes, arrastando junto de si o amigo Zé Fernandes, narrador dessa aventura.

Só a viagem de Paris a Tormes mereceria uma análise própria, mas é preciso que nos detenhamos ao essencial. Assim, Jacinto chega à sua propriedade totalmente despido de seus apetrechos civilizacionais (que foram extraviados em uma dezena de caixotes na baldeação de trens quando da passagem pela Espanha). Ao se deparar com a doença, a fome e o analfabetismo em suas terras, Jacinto, que sempre flertara com um socialismo livresco, busca empreender uma “revolução” em sua propriedade. Antes, seus planos de negócios envolviam uma queijeira tão surreal quanto pomposa, toda erigida em vidro e ferro. Esses planos de trabalho, contudo, são absolutamente comprometidos quando a realidade dos colonos bate à sua porta. Jacinto, quando comparado a seus pares queirosianos, talvez seja o único que, de fato, tenha melhor se aproximado do universo do trabalho. Jamais retornará a Paris, casando-se nas serras e ali permanecendo para criar os filhos. Se não empunha a enxada propriamente, Jacinto ao menos reconhece que aqueles que trabalham para ele merecem o mínimo: uma escola, uma casa em que não se chova dentro, um médico que os atenda e um salário que os mantenha longe da fome. Longe, portanto, de fazer uma revolução, o que Jacinto alcança, no máximo, é a compreensão de que o trabalho e o trabalhador são centrais para o desenvolvimento de uma nação. Não consta de seus planos, entretanto, deixar de ser proprietário e de desfrutar das rendas de suas terras.

Somados, por fim, esses três romances, lidos em conjunto, nos dão um retrato bastante acurado desse processo de transição entre um ethos aristocrático para um ethos burguês – processo que, em Portugal, se estende de 1850 a 1890 (Os Maias), com a Regeneração, e, depois do Ultimatum inglês, em 1890, até o fim do regime monárquico (A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras).