Neste mês de novembro, a tero apresenta mais um texto da série Literatura e Trabalho, desta vez abordando a obra de ficção O Curso do Amor (The Course of Love), do escritor Suíço, radicado na Inglaterra, Alain de Botton, publicado pela primeira vez em 2016 (com edição em português, pela Intrínseca, em 2017).
Se você já é familiarizado com a obra ora em apreço talvez esteja intrigado com o fato de ela ser abordada numa coluna que versa sobre Literatura e Trabalho. Mais ainda se tiver em conta que Alain de Botton não é literato, mas filósofo. De qualquer forma, sendo o trabalho uma categoria central para a história da humanidade, natural que o tema apareça, invariavelmente, em toda e qualquer obra de representação literária – ainda que o objetivo do autor não seja tratar do tema. Para os que desconhecem o livro, no entanto, é necessário esclarecer que O Curso do Amor é uma obra que se pretende inovadora na abordagem da vida a dois. Conforme o autor, é preciso desmistificar uma concepção romântica de amor, em que as histórias terminam quando o casal se une em matrimônio – justamente quando o amor, como aprendizado, começa a acontecer.
Há duas questões que pretendo debater aqui. A primeira delas diz respeito à representação artística e literária, propriamente. Não é verdade que o casamento não tenha sido objeto da literatura – sobretudo a de cunho realista. The Portrait of a Lady (Retrato de uma Senhora), de Henry James é um clássico e uma referência no quesito expectativa versus realidade, em relação ao antes e depois do casamento. Da mesma forma, Madame Bovary, de Gustave Flaubert ou O Primo Basílio, de Eça de Queirós, se quisermos um exemplo em língua portuguesa, nos apresentam os desdobramentos de um casamento que não entrega à mulher o que a emergente sociedade burguesa prometera. Mas a essa questão pretendo voltar depois de apresentar a segunda: o autor opta por uma abordagem psicanalítica em sua obra de ficção, atribuindo, em grande medida, ao sujeito e aos seus traumas passados toda a responsabilidade pelos seus dissabores no presente. A forma que adota para narrar sua história só reforça a estratégia. A narrativa é acompanhada de pequenos comentários, em destaque, como se o autor, nos intervalos da história, precisasse opinar e interpretar o que está se passando.
A escolha formal é arriscada, uma vez que tais comentários poderiam facilmente soar como as vozes impertinentes de casais narcisistas que insistem em falar durante as sessões de cinema. Não é o que acontece, afinal. Como seu modo de contar a história também não é nada convencional, os comentários acabam se compondo como parte integrante da narrativa. O fato, todavia, é que a abordagem psicanalítica, no modo como se dá, ignora que há uma série de acontecimentos que interferem nas relações humanas e que não são de responsabilidade direta do sujeito. Assim, para o narrador, Kirsten é ríspida com o marido por conta de um pai que a abandonou; da mesma forma, Rabih não suporta a bagunça de sua casa, sobretudo quando chega de viagem, porque aquilo remete ao cenário de guerra de sua infância em Beirute. Ora, por que não atribuir os desentendimentos entre os dois a uma empresa de arquitetura indiferente a todas essas subjetividades e que envia Rabih a trabalho para longe de sua esposa justamente num momento delicado para os dois?
Decorre disso que o narrador atribua boa parte dos problemas dos casais em geral a uma concepção de amor romântica, alheia à realidade. Embora esteja ciente e certo de que essa concepção moderna de amor seja uma construção bastante recente, o autor parece ignorar que ela seja fruto de um processo histórico bastante específico e fundamental, que remete à ascensão da burguesia ao longo dos séculos XVIII e XIX. Quem quer que esteja habituado à leitura de obras literárias escritas por qualquer membro da nobreza notará a diferença de uma concepção aristocrática do amor, em comparação a uma concepção burguesa – Les Liaisons Dangereuses (As Ligações Perigosas), de Choderlos de Laclos, ou qualquer peça do Marquês de Sade são bastante ilustrativos nesse sentido. Em suma, essas distinções de classe em relação ao que seja o amor e o casamento decorrem de um fato fundamental: enquanto os aristocratas vivem do ócio que a renda do capital por eles acumulado sustenta, os burgueses vivem de explorar o trabalho alheio – e chamam isso de… trabalho (o capitalista se autodenomina trabalhador). O problema central com que nos deparamos, entretanto, é de cunho ideológico: a concepção de matrimônio adotada pelo ocidente, inclusive pelos trabalhadores e pequenos burgueses explorados pelos capitalistas, é a do amor romântico burguês. Nesse sentido, quando o narrador acusa a representação artística (sobretudo o cinema hollywoodiano) de falsear a realidade com uma enxurrada de comédias românticas, se esquece de que o público que consome essas narrativas o faz porque, de certo modo, tem uma profunda identificação com os valores ali apresentados. Para deixar claro o que ocorre, é preciso ir ao texto:
Hoje, Rabih traz à tona uma discussão da noite anterior. Era uma questão de trabalho e dinheiro: sua empresa [em que trabalha] corre o risco de ter que congelar ou reduzir salários a curto prazo, o que poderia levá-los a atrasar o pagamento da hipoteca. Kirsten mostrou-se quase indiferente. Por que sua esposa sempre reage de uma maneira que causa tanta preocupação [nele] diante de coisas tão sérias? Será que não podia ter encontrado algo útil para dizer, qualquer coisa? Será que ouviu direito? Por que tantas vezes lhe responde apenas com um intrigante “Humm” quando ele mais precisa do apoio dela? Foi por isso que ele gritou com ela, xingou e saiu porta afora. Não foi o ideal, mas ela o estava decepcionando muito. (p. 218)
A tradução do texto pode induzir à ideia de que Rabih seja dono da empresa, quando, de fato, não passa de um vice-diretor com apenas um projeto aprovado em toda sua carreira de arquiteto – daí os comentários em colchetes. Nesse sentido, sua preocupação decorre do fato de que o congelamento de salário que o deixa angustiado é o dele próprio. Assim, um problema no trabalho, e, portanto, alheio a subjetividades, pode comprometer todo o sustentáculo do amor pequeno burguês – que ignora o pressuposto básico de que é preciso garantir a existência material antes de tudo na lógica capitalista. Para piorar, Rabih desaba todo seu ódio de classe não sobre o dono da empresa, mas sobre sua esposa, Kirsten – quando julga que ela é quem deveria ter as respostas e as saídas para toda a situação. Como pequeno burguês colaborante e a serviço do status quo, Rabih jamais atribuiria à exploração do trabalho suas angústias e frustrações cotidianas – e isso é perfeitamente compreensível, dada sua condição de classe. Daí a se justificar, de uma perspectiva psicanalítica, que ele culpe a esposa pela mediocridade dele há um problema de fundo.
Não pretendo, com isso, desmerecer o livro de Botton – afinal, a própria perspectiva psicanalítica por ele adotada é fruto da ascensão burguesa, de seu modo de vida e de seus valores. O casal, por exemplo, não opta pela terapia para discutir as relações de classe e exploração do trabalho de que são vítimas – embora tenham ciência de seus “privilégios” como cidadãos do mundo desenvolvido. A terapia, ao contrário, é um recurso de que se valem para permanecerem juntos (ainda que a função da terapeuta não seja necessariamente essa). O que é preciso deixar claro, isso sim, é que há muito que a literatura denuncia a farsa sobre a qual se assenta a concepção do amor romântico burguês e, sobretudo, que o fracasso dessa instituição não é responsabilidade de subjetividades problemáticas – senão de um sistema produtivo que inviabiliza qualquer possibilidade de idílio amoroso, ao menos para aqueles que só fazem vender a própria força de trabalho.
Créditos da imagem de capa: intrínseca