Música e Trabalho

Vivendo da música

Por Elisa Barca Vergara1

É incontroverso e quase unânime entre o ouvinte despretensioso ou o mais especializado que a música faz bem para o espírito humano, traduz sentimentos e tem um papel social relevante. Como parte da cultura e da arte, arrisca – se a dizer que o espaço para a música é, em certa medida, democrático, pois existem uma variedade de gêneros, estilos e arranjos a serem escutados pelo arbítrio individual de cada um. No entanto, o que seria da música se não fossem os músicos?

Atentando apenas para um recorte do Brasil a partir do século XIX, aqui se propõe uma construção singela sobre essa relação de trabalho tão essencial para os ouvidos como também para a compreensão da história, identificação de uma comunidade ou até mesmo para elucidação de um contexto político ou econômico do país. É possível afirmar então que a musicalidade já estava impetrada nos lares domésticos, nos encontros festivos, nas cantigas de ninar, nas religiões ou nas resistências dos negros expressadas pela capoeira.

Embora a circulação da música gravada tenha advindo posteriormente, na metade do século XIX e início do século XX, as partituras publicitárias, atualmente denominados jingles, eram feitas por pianistas ou compositores, que incentivados pela autopromoção ou pela necessidade de subsistência (DOS SANTOS JÚNIOR, 2016, p.59), recebiam encomendas de proprietários de jornais, clubes e comerciantes com o intuito de divulgar os seus espaços e produtos. (GODOY, 2012). Inicialmente, as notas musicais eram apenas instrumentais, tempos depois os músicos as produziram com letra, vendendo esses trabalhos pelo país afora.

A presença dos músicos também já estava nos teatros. Ali se abrigavam manifestações musicais, tais como as realizações feitas por companhias de ópera e operetas ou pelas companhias líricas mediante espetáculos cômicos e dramáticos. Outro espaço cheio de músicos eruditas e populares era o teatro de revista, sendo considerado o “maior mercado de trabalho dos músicos” no início do século XX.

Para tanto, em que pese muitos músicos ocupassem esses cargos, a contratação não era duradoura e muito menos estável, uma vez que finalizada a temporada de apresentações, as companhias e os empresários já dispensavam esses trabalhadores. (CABRAL,1997, p.32).

Seguindo adiante, em razão do advento do fonógrafo e depois do gramofone, as notas musicais puderam ser gravadas em disco. As “máquinas falantes” se espalharam nas residências mais privilegiadas e a música gravada disseminou, iniciando o processo de profissionalização dos músicos. (TINHORÃO, 1998, p.247). Destaca- se que em 1928, foi editado o Decreto n. 5.492, conhecido por Lei Getúlio Vargas (na época deputado federal), o qual regulou a profissão do músico, estabelecendo requisitos como a duração do trabalho e a proteção aos direitos autorais.

Já em meados da década de 30, surge o rádio e a propagação da música se acelera. Inicialmente, esse instrumento de comunicação foi objeto de cobiça para a elite, mas os avanços tecnológicos advindos possibilitaram o barateamento do seu custo, o que gerou um consumo em massa não só pela classe proletária nos centros urbanos, mas também pelos trabalhadores rurais.

É, a indústria da rádio tinha se tornado um bom negócio, os empresários estavam sempre por ali angariando amadores. Nessa mesma linha, as emissoras já lucravam muito, uma vez que aproveitaram o embalo para transformar o rádio num veículo de anúncios publicitários às grandes empresas, sobretudo as de capital norte – americano. (DE MORAES, 1999, p. 78-79).

Para os músicos que viviam pela apresentação nas rádios, o aumento da propaganda assegurou maiores contratações com salários e cachês. Além disso, possibilitou a fama e o sucesso de alguns artistas com apresentações de grandes espetáculos. (DE MORAES, 1999, p.80)

De outro lado, grande parte dos artistas populares ou de novos talentos tinham dificuldade para viver somente das atividades musicais, pois precisavam de anúncios publicitários para serem patrocinados e aí conseguirem divulgar o seu trabalho no rádio. Pior ainda para o artista negro, que em razão do racismo enraizado, enfrentou obstáculo ainda maior para se inserir nesse mercado de trabalho (DE MORAES, 1999, p.81).

É nessa mesma época que os auditórios com shows ao vivo de música popular, através de apresentações de artistas e também de calouros, ganham uma enorme relevância. Por conseguinte, as emissoras de rádio correram para modificar os seus próprios estúdios, os convertendo em palcos de apresentação com orquestras ou pequenas bandas. A Rádio Cultura, por exemplo, em 1939 inaugurou um requintado e suntuoso auditório na avenida São João em São Paulo.

Não se nega que a conquista pela popularidade, através de uma avalanche de fãs, gerou um maior reconhecimento aos artistas de rádio e também provocou maiores anseios aos amadores à busca de prestígio. O sambista Adoniran Barbosa foi um dos calouros que participou de alguns programas de auditório, sendo aprovado em primeiro lugar com a música “Filosofia”, de Noel Rosa.

Entretanto, se engana quem acredita que todos músicos estavam em plena ascensão no mercado de trabalho, construindo sua própria liberdade musical, pois muitos estavam à margem da profissionalização, necessitando de outros trabalhos para sobreviver. Alguns tentavam espaços em apresentações nos bares, nas rodas de choro e de samba, nos festejos populares. Outros, embora pudessem trabalhar apenas com a atividade musical, tinham criações artísticas muitas vezes limitadas à produção mercadológica ou aos interesses exclusivamente políticos.

Com a chegada da televisão, os programas de auditórios das emissoras de rádios começaram a perder relevância, culminando na demissão de muitos músicos e ocasionando a adaptação a um novo tempo, uma vez que a maioria dos recursos de publicidade foram alocados para TV (PETERS, 2009). O desenvolvimento da nova tecnologia, inserida no país na década de 1950, ainda propiciou lugares para alguns músicos em programas de calouro, mas de modo mais reduzido.

De fato, os artistas mais famosos foram alocados para as telas da TV em horário nobre, entretanto é importante notar que a valorização vocal ou instrumental perdeu o lugar de destaque, visto que a preocupação começou a girar em torno das habilidades performáticas e da imagem visual diante da câmera. O músico era compreendido pelos seus gestos, movimentos e posturas cênicas através da linguagem produzida pelos artefatos midiáticos.

O astro da música se tornou inspiração para os telespectadores, os quais buscavam copiar e reproduzir as vestimentas, costumes e até atitudes, mas ao mesmo tempo, esse trabalhador teve sua vida privada e a sua intimidade invadidas sem nenhuma permissão, como se a exposição pessoal fosse a consequência da fama.

Quem não estava nos veículos de comunicação, percorria outro caminho, como por exemplo, nas apresentações de bailes, nos botecos da esquina, nos encontros estudantis ou nos conservatórios, ainda que a contraprestação pudesse chegar através de escambo ou por uma pequena quantidade de dinheiro. Atenta -se para o fato de que labuta pela música não era (e nunca foi) somente permeada na relação de artista e audiência.

Seguindo adiante, não sem luta e esforço comum dessa classe trabalhadora, em 1960, durante o mandato presidencial de Juscelino Kubitschek, a Lei n. 3.857 foi editada, solucionando em boa parte questões e disposições especiais não abordadas pela CLT no tocante aos músicos.

Ademais, apenas um parêntese aqui, nessa trajetória não se pode esquecer da enorme mobilização de muitos músicos na ditadura militar instalada em 1964 no país. A cultura e arte que representavam afronta ao governo eram repreendidas, e por isso, os militares perseguiram tantos artistas, resultando em prisões arbitrárias e violências abruptas. Entretanto, a música tocada e cantada ecoa e assim, tantas canções e músicos, que não cabem nesse pequeno texto, permanecem vivos na história do país.

Não obstante, a sociabilidade humana não é estática, a todo momento ocorrem alterações de pensamento, consumo e concepções sobre a relação do sistema econômico, político e social, e nessa perspectiva novas formas foram incorporadas no campo musical. As inovações tecnológicas para a edição, produção e processamento das músicas propiciaram adaptações aos ouvintes, mas, principalmente, geraram alterações significativas para os artistas musicais.

Não só, mas também o meio da difusão da música por LP (long playings), pelas fitas cassetes, CDs (Compact Disc), digitalização através da internet e mais adiante, a partir de 2010, pela introdução de plataformas de streaming transfiguraram a indústria cultural, o que necessitou reinvenção, transmutação e até em certa medida, constituiu a ressignificação da música para muitos músicos.

Para quem se inseriu na economia de plataformas, o conteúdo musical que já estava esquecido, agora está em ruínas, a conquista do músico fora abarcada pela sua estética, mediante um gerenciamento contínuo de impressões online e multiplicações de likes nos perfis profissionais elencados nas mídias sociais. A denominada “financeirização da economia da cultura” com a monetização de bens culturais representa uma tensão exposta alarmante que merece ser analisada cuidadosamente.

Não obstante, a profissão de músico não se resume apenas aquele que se apresenta num meio digital. O músico pode ser somente aquele que interpreta uma canção, o instrumentista, o compositor, o regente, o lecionador de algum instrumento ou de canto, o DJ ou músico amador, mesmo sem o diploma universitário. O “ser músico” é amplo e transversal, que extrapola e difunde a arte na vida dos indivíduos, é um trabalhador, que por meio de sua aptidão, busca o seu sustento.

Outrossim, para além de todos enfrentamentos diários da vida profissional do músico, atualmente o Estado, na figura de representante do povo, se desloca da manifestação artística como valor fundamental. Busca por meio de ações e omissões eloquentes, desmantelar a identidade cultural do povo brasileiro com a música, transformando os músicos em inimigos.

Não à toa, durante o mandato do ex-presidente Michel Temer ocorreu a extinção do Ministério da Cultura, transformado em uma Secretaria, o que gerou prejuízo substancial para a implementação e a organização setorial de políticas públicas na área.

O retrocesso não parou por aí, o governo do atual presidente Jair Messias Bolsonaro, num projeto de inflexão intelectual pautado no ultraconservadorismo e fundamentalismo, tenta censurar vozes, sons, espaços e movimentos que lhe são contrários, solapando o livre exercício das atividades artísticas e culturais, valor esse tão caro numa sociedade democrática.

Não custa lembrar o pronunciamento do ex-Secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, que no exercício do cargo no início desse ano, copiou trechos do discurso do Ministro da Propaganda do führer nazista Joseph Goebbels, em um vídeo oficial do governo (ALESSI, 2020).

E não é só, dentre tantas outras medidas reacionárias já postas, nesse momento tão triste causado pelo coronavírus – Covid 19, na permanência da função de Secretária Especial da Cultura, a atriz Regina Duarte, nem ao menos se pronunciou sobre a morte de artistas que perderam suas vidas em decorrência de complicações pelo vírus. Embora tenha se retratado após a repercussão negativa nas redes sociais, num primeiro instante se calou pela perda de Moraes Moreira, Aldir Blanc e outros tantos músicos que nos deixaram.

Ainda, para os artistas informais, mas não menos importantes, o auxílio emergencial de R$ 600,00 durante o período de três meses sucessivos, chegou tardiamente. Os recursos repassados pela União aos Estados e Municípios para o pagamento do benefício a esses trabalhadores começaram a ser destinados agora, somente no mês de setembro (GOVERNO DO BRASIL, 2020).

Por derradeiro, é aqui que se resgata a composição de Milton Nascimento e Fernando Brant. É um convite e um esforço para compreender as entrelinhas da narrativa do músico por meio de elementos constitutivos palpáveis e reais. “Viver pela música” simboliza a luta pela arte, a resistência, mas, principalmente, exprime um trabalho digno, o qual deve ser sempre valorizado pela comunidade brasileira.

Foi nos bailes da vida ou num bar
Em troca de pão
Que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim

O canto é o caminho, é a finalidade.

Cantar era buscar o caminho
Que vai dar no sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe tudo tão bom
Até a estrada de terra na boléia de caminhão
Era assim

Com a roupa encharcada e a alma
Repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se foi assim, assim será
Cantando me desfaço e não me canso
de viver nem de cantar.

Referências

ALESSI, Gil. Secretário da Cultura de Bolsonaro imita discurso de nazista e é demitido. Brasil El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-17/secretario-da-cultura-de-bolsonaro-imita-discurso-de-nazista-goebbels-e-revolta-presidentes-da-camara-e-do-stf.html. Acesso em: 25 set.2020.

DE MORAES, José Geraldo Vinci. Rádio e música popular nos anos 30. Revista de História, n. 140, p. 75-93, 1999.

CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. [3. ed.] Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1997).

DOS SANTOS JÚNIOR, Alaor Ignácio. Do fado de padaria ao rap do carro zero: evolução e indefinição da música nos jingles publicitários; Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/19563/2/Alaor%20Ign%C3%A1cio%20dos%20Santos%20J%C3%BAnior.pdf. Acesso em: 17set.2020.

GODOY, Amilton. Partituras publicitárias. Antes do rádio. Vargem Grande Paulista: A9, 2012;

GOVERNO DO BRASIL, 2020. Lei Aldir Blanc de apoio a cultura é regulamento pelo Governo Federal. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/cultura-artes-historia-e-esportes/2020/08/lei-aldir-blanc-de-apoio-a-cultura-e-regulamentada-pelo-governo-federal. Acesso em: 25set.2020.

MACHADO, Cacá. O enigma do homem célebre: ambição e vocação de Ernesto Nazareth. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007, p. 89;

PETERS, Ana Paula. O regional, o rádio e os programas de auditório: nas ondas sonoras do Choro. Revista eletrônica de musicologia, v. 3, 2004.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998.


  1. Advogada. Aluna da Especialização em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (FDUSP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa “O trabalho além do direito do trabalho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral” (NTADT). Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo Instituto de Economia da Unicamp (CESIT/ UNICAMP).