Música e trabalho

Até quando?

“Até quando”? até quando viveremos sob a intensa precarização do trabalho?

Por Felipe Meleiro Fernandes*

Muito me toca a oportunidade de falar sobre duas grandes paixões: Direito e Música – ou vice-versa.

Logo de início me deparei com a árdua tarefa de selecionar apenas uma música para traçar o paralelo com o Direito e principalmente sobre o mundo do trabalho.

Tarefa difícil, quiçá impossível selecionar apenas uma música, dentre tantas que podemos escolher. Até mesmo “Perfeição”, da inexorável e sempre atual Legião Urbana, me passou pela cabeça, até porque é fácil de enxergar o momento atual como uma grande celebração à estupidez humana, estupidez de todas as nações, ao Brasil e sua corja de assassinos (genocidas), covardes, estupradores e ladrões.

Todavia, diante do momento de avanço desenfreado do capital, não apenas sobre as garantias de patamar mínimo civilizatório da classe trabalhadora conquistada a base de muito suor e sangue, mas também sobre as mais diversas formas de garantias constitucionais (acesso à saúde universal, à segurança, garantia à vida etc.), nenhuma letra se torna mais oportuna e com bases reflexivas até providenciais para o momento como “Até quando” de Gabriel, o Pensador.

Aliás, há muito o que falta é justamente o senso crítico e o ato de pensar e se revoltar, lutar contra o status quo.

Não é de hoje que direitos e garantias asseguradas como patamar mínimo são solapadas e sofrem grande avanço do capital com o recrudescimento do ideário neoliberal e da diminuição das garantias juslaboralistas e também do Welfare State.

Afinal, a bem dizer os direitos dos trabalhadores são vilipendiados desde sempre e em que pese nossa Carta Magna ter previsões no sentido de garantir o mínimo existencial, o grande capital há tempos o vilipendia e cada vez mais lança suas garras vorazes sobre as parcas conquistas dos trabalhadores.

A primeira estrofe da canção escolhida assim diz:

Não adianta olhar pro céu
Com muita fé e pouca luta
Levanta aí que você tem
Muito protesto pra fazer
E muita greve, você pode
E você deve, pode crer

E por falar em greve, embora o artigo 9º de nossa Carta Republicana dite que o direito de greve, “além de ser assegurado, compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e quais interesses devam defender”, menos de um ano depois, foi editada a Lei de greve (Lei 7783/89), inconstitucional, que traz diversos requisitos para o exercício “legal” da greve, bem como a jurisprudência tem decidido que não pode haver greve política, ignorando o fato de que essencialmente todo ato de greve é em si um ato político, retirando, portanto, seu caráter revolucionário e apenas corroborando o quanto exposto no livro Legalização da Classe Operária, demonstrando o que ocorre quando a classe trabalhadora é cooptada pelo Estado.

Em suma, nossa Lei Maior autoriza o exercício da greve como direito dos trabalhadores competindo a eles quais motivações e interesses. A Lei maior diz que pode, a canção escolhida vai além “você pode, você deve”.

Trazendo a análise e a reflexão que a música nos induz, destacamos o seguinte refrão:

Não adianta olhar pro chão
Virar a cara pra não ver
Se liga aí que te botaram numa cruz
E só porque Jesus sofreu
Não quer dizer que você tenha que sofrer

Até quando você vai ficar usando rédea?
Rindo da própria tragédia?
Até quando você vai ficar usando rédea?
Pobre, rico ou classe média?

Atualmente em que tanto se romantiza a pobreza e o esforço exacerbado de um trabalho cada vez mais precarizado com adjetivos que nada mais são que eufemismos para salários de fome, postos de trabalho precarizados, diminuição de postos de trabalho formal, tudo sob a pecha de ser empreendedor de si mesmo, menos direitos e mais trabalho, e a retórica neoliberal, importante perceber o quanto estamos rindo das nossas tragédias, o quanto estamos sob cabrestos.

Necessário também relembrar que apesar de atualmente constitucionalizado e da tentativa de se criar um pacto social efetivo, tal qual posto na Carta Republicana, os direitos dos trabalhadores sempre foram alvo de ataques e tentativa de destruição, não raro, antes mesmo de sua entrada em vigor no orbe jurídico.

Pode-se inclusive, traçar um paralelo com o discurso que sempre vem à tona da extinção da Justiça do Trabalho (até quando este debate sobre a extinção permanecerá? Até quando os donos do capital desejarão o fim da Justiça do Trabalho?), com o discurso à época da edição da Lei do Ventre Livre, como leciona Souto Maior(1):

Houve mesmo quem dissesse, à época da Lei do Ventre Livre, que a extinção da escravatura além de ser um roubo, um esbulho de “inspiração comunista” (Almeida Pereira), significando a ruína da propriedade, ainda não considerava a realidade extremamente favorável que viviam os escravos. Conforme relata Viotti, “Mencionava-se a benignidade dos senhores, a suavidade das relações domésticas e dizia-se novamente que a escravidão assegurava ao escravo situação invejável, superior à do jornaleiro europeu, do proletário dos grandes centros industriais(…) Repetia-se que o tratamento do negro era bom, tinham do que vestir, a alimentação não lhes faltava e os senhores ‘por sentimento inato e habito comum’ eram verdadeiros pais de seus escravos e estes poderiam ser considerados verdadeiramente emancipados”.

Boa parte da classe média que defende uma visão neoliberal e não encontra problemas nesse atual modelo de mercado e negócio e não vê problemas nos “empreendedores de si mesmo” não percebem que em última instância estão rindo de sua própria tragédia, uma vez que “já não há trabalhadores propriamente ditos. Só existem nômades do trabalho. Se ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, a tragédia da multidão hoje é já não poder ser explorada de modo nenhum, é ser relegada a uma “humanidade supérflua” entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital”(2).

Aliás, boa resposta para a indagação que nomeia a canção escolhida é famosa poesia de Bertold Brecht(3) chamada é tempo de agir, onde termina dizendo “Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo”, ou seja, quando a classe média e aqueles mais bem empregados e com melhores remunerações perceberem que a precarização do trabalho e dos salários e que a lógica neoliberal de extirpação de direitos trabalhistas também os atingirão, será tarde. Até quando permanecerão de olhos fechados?

Na realidade, a canção nos convida a uma reflexão muito além da relação apenas trabalhista, mas sim em relação às mazelas da sociedade como um todo.

Você se faz de surdo, não vê que é absurdo
Você que é inocente foi preso em flagrante
É tudo flagrante
É tudo flagrante

A polícia matou um estudante
Falou que era bandido, chamou de traficante
A justiça prendeu o pé-rapado
Soltou o deputado e absolveu os PM’s de Vigário

Outros inúmeros são os exemplos que podemos citar, vê-se claramente que qualquer passo à frente do campo progressista, desde os primórdios, sempre foi rechaçado com veemência pela elite e detentores tanto do poder quanto do capital.

Nesta toada de que os detentores quer do poder, quer do capital sempre lutaram para a manutenção de seus privilegiados postos, imperioso se faz rememorar Marx e Engels(4) que identificaram que as relações entre trabalhadores e detentores do capital tendem a ser dramaticamente conflituosas e assim diziam:

“a história de toda sociedade, até nossos dias, é a história de luta de classes(…) opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição, empenhados numa luta sem trégua (…) que a cada etapa conduziu a uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou ao aniquilamento das duas classes em confronto”.

Todavia, embora as relações trabalhistas sejam por essência conflituosas, a classe trabalhadora continua dia após dia levando porrada, tendo seus direitos e conquistas solapados e até quando levarão porrada sem se oporem? Até quando permitirão a destruição do tecido social, das garantias do patamar do mínimo civilizatório, do enfraquecimento dos Sindicatos e de todos aqueles que lutam pela classe operária sem nada fazer, sem se opor?

Até quando você vai levando porrada, porrada?
Até quando vai ficar sem fazer nada?
Até quando você vai levando porrada, porrada?
Até quando você vai ser saco de pancada?

Até quando legislações em detrimento da classe trabalhadora permanecerão sendo editadas (reforma trabalhista como principal exemplo, embora não o único) ainda que à revelia da Constituição Federal e dos Pactos e Convenções Internacionais firmadas?

A polícia só existe pra manter você na lei
Lei do silêncio, lei do mais fraco:
Ou aceita ser um saco de pancada ou vai pro saco

A programação existe pra manter você na frente
Na frente da TV, que é pra te entreter
Que pra você não ver que programado é você

Até quando permaneceremos, enquanto classe trabalhadora, letárgicos diante de tanta porrada? Como bem identificou Ricardo Antunes(5) a forma do capital como posto atualmente só levará à destruição da sociedade, e vice-versa:

Isso porque o sentido do trabalho que estrutura o capital (o trabalho abstrato) é desestruturante para a humanidade, enquanto seu polo oposto, o trabalho que tem sentido estruturante para a humanidade (o trabalho concreto que cria bens socialmente úteis), torna-se potencialmente desestruturante para o capital. Aqui reside a dialética espetacular do trabalho, que muitos de seus críticos foram incapazes de compreender.

Os exemplos são inúmeros, como por exemplo a crise da educação que se tornou acima de tudo tão somente um negócio lucrativo e não busca necessariamente a formação de cidadão e de profissionais qualificados, as empresas que, embora não invistam em formação de seus empregados, exigem para contratação os mais altos níveis de expertise e experiência, sendo esta última, não raro, exigida em períodos maiores que o permitido legalmente (art. 442-A CLT). Em suma o mercado/capital exige aquilo que ele não dá, ou como bem diz o Pensador Gabriel:

Acordo, não tenho trabalho
Procuro trabalho, quero trabalhar
O cara me pede diploma
Num tenho diploma, não pude estudar

E querem que eu seja educado
Que eu ande arrumado que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é mundo que me dá
Consigo emprego, começo o emprego
Me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego
Nem tempo pra raciocinar

E trazendo a reflexão já posta do Professor Ricardo Antunes, o capital e o modelo atual são autofágicos e portanto, insustentáveis, pois afinal se exige aquilo que ele nem mesmo dá, onde vamos parar?

Não peço arrego, mas onde que eu chego
Se eu fico no mesmo lugar?
Brinquedo que o filho me pede
Num tenho dinheiro pra dar

Se permanecemos no mesmo lugar, se não nos movemos, se não buscamos formas de superar a precarização, ainda que tenhamos mecanismos legais para tal, haja vista a previsão constitucional de proteção do trabalho contra a automação – que embora tenha previsão legal na prática não tem se verificado – onde iremos parar?

As previsões para o mundo do trabalho não são nada animadoras, o mundo e os postos de trabalho se tornaram além de precários, líquidos, conforme descrição de Zygmunt Bauman, o que só foi corroborado e agravado pela crise da Covid-19. Os empreendedores de si mesmo, o mais novo eufemismo de trabalhadores em excesso, se auto-vangloriarem de serem “workaholics” bem identificados e denominados de sociedade do cansaço por Byung Chul Han e que levam trabalhadores literalmente à morte por exaustão recebendo até nome próprio para tal (Karoshi), e ainda o caos social que o desemprego estrutural pode gerar segundo previsões de Yuval Noah Harari(6) que a próxima geração será uma geração não de desempregados, mas de não empregáveis, justamente em razão do avanço tecnológico e da inteligência artificial, nos fazem concluir, nos dizeres de Ricardo Antunes, que a tragédia da atual geração é não ter trabalho para ser explorado, não ter sequer renda.

Escola, esmola
Favela, cadeia
Sem terra, enterra
Sem renda, se renda
Não, não!

Portanto, nos perguntamos, até quando? A única saída é a reflexão e a luta para uma sociedade mais justa e igualitária, contudo, enquanto não mudarmos e lutarmos, enquanto não tivermos o senso crítico de identificar o quão nefasto é o atual sistema para uma sociedade mais justa com melhor distribuição de renda, nada mudará, afinal, como diz Gabriel o Pensador:

Muda que quando a gente muda
O mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente
Na mudança de atitude
Não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro

Referências:

  1. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. História do direito do Trabalho no Brasil. Curso de Direito do Trabalho. Volume I – Parte II, LTR, 2011,p.479.
  2. ANTUNES, Ricardo. O privilégio da Servidão. São Paulo, Boitempo 2018.
  3. É PRECISO AGIR. Bertold Brecht (1898-1956) Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei Agora estão me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo.
  4. MARX, Karl e ENGELS, Friederich, Manifesto do Partido Comunista.1848.
  5. ANTUNES, Ricardo, O privilégio da servidão, p.26, editora Boitempo, 2018.
  6. http://fernandessc.wixsite.com/blog/single-post/2017/06/23/O-significado-da-vida-em-um-mundo-sem-trabalho.


  • Felipe Meleiro Fernandes – Advogado, Professor, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP, pesquisador do Núcleo o Trabalho além do Direito do Trabalho -NTADT-USP e Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital GPTC-USP.